Perdas e danos

Nesta vida a gente perde, recebe de volta, reparte as sobras, ganha o que não espera, no entanto, quando a gente percebe, nada mais nos resta a não ser a esperança em dias melhores.

Assim transcorre a nossa existência. Desde o nascimento até a nossa despedida.

Hoje mesmo, depois de um longo período chuvoso, pode-se perceber o sol, entre nuvens cinzentas.

Parece que a chuva vai dar um tempo. Bem que precisamos.

Tudo parece encharcado. Um mofo ameaça tomar conta da gente.

Agora mesmo, ao chegar ao consultório, o céu ameaça se tintar em azul. Mas com esta intermitência de tempo mais tarde deve chover novamente.

A vida se reparte entre perdas e ganhos.

Mas, para aquele amigo, gente sofrida, que vive de esmolar, sem trabalho, sem ocupação, segundo me afiançou, naquela segunda-feira chuvosa, para ele a vida notadamente se resume mais em perdas do que ganhos.

Naquela manhã, quando nos encontramos, naquela mesma rua costumeira, chovia a encher canoas que afundavam na lama pegajosa em que se transformou a nossa cidade.

E ele, cabisbaixo, sujo, molhado até os ossos, parou-me num átimo.

Mal o reconheci. Há muito tempo não o via. Era um maltrapilho sujismundo, um bagaço reduzido a trapos.

Se bem me lembro seu nome era Pedro. Tínhamos a mesma idade. Contávamos, naquela data, com exatos setenta e dois anos. No entanto Pedro parecia mais.

Durante o nosso breve colóquio falamos de tudo um cadinho.

Fomos colegas de bancos escolares num passado distante. Pedro era um aluno razoável.

Se bem que um tanto disperso e ausente das aulas.

O futuro nos colocou em realidades dispares. Enquanto eu tive oportunidade de continuar os estudos Pedro abandonou a escola antes de terminar o primeiro grau.

Depois nos apartamos. Eu me tornei médico. Ele não passou de um homem sem rumo.

Como ele mesmo me disse a vida fez dele um náufrago de águas revoltas. Não se casou. Por pura sorte dela. Se teve filhos não os conheceu. Sorte deles.

Naquela tarde chuvosa, mais parecia um diluvio, Pedro, ao me reconhecer, pediu auxilio na intenção de comprar gás de cozinha. No barraco onde morava, sob o risco de desmoronamento, a qualquer momento, o teto goteirava mais do que do lado de fora.

Pedro, acostumado a viver nas ruas, fazendo bicos, vendendo balas nos semáforos, um sem teto, um andarilho sem ter pra onde ir, naquele dia amaldiçoado, acabou quase morrendo soterrado durante uma chuva que caiu durante a noite.

Salvou-se com a roupa do corpo. Nada lhe restou pois nada tinha.

Não tive como recusar alguns trocados que levava no bolso. Era pouco. Quase nada.

Antes de nos despedirmos ainda dele ouvi, daquela boca onde faltavam quase todos os dentes, esta expressão que me ensejou este texto.

“Quer saber. Agora nada mais me resta. Até mesmo os amigos de dantes me viram a cara. Só me acompanha um cãozinho amigo. Junto a ele vivo sem saber o que me reserva o amanhã. Melhor nem saber. A vida não me deu presentes. Tive, durante toda a minha existência mais perdas e danos. Os ganhos não são contabilizados. Sou um sinônimo de sofrência”.

É a mais pura verdade. A gente vive entre perdas de danos. Enquanto alguns ganham mais do que o merecido. A maioria vive na mais completa abstinência.

 

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