Um dia de fúria

Zé Miguel era calminho calminho.

Nunca o vi aperreado por uma coisa qualquer.

Tolerava estoicamente as vicissitudes da vida. Remava contra a corrente sem se deixar abater.

Pra ele tristeza não existia. Vivia exibindo um sorrisão de bochecha a bochecha. Quem o conhecia, desde cedo, quando menino ainda, bem sabia da sua alegria companheira. Era solícito mesmo com desconhecidos. Amado por todos. Admirado por sua fidalguia no trato. Educado mesmo não tendo frequentado uma escola sequer. Era gente boa. Cujo único defeito era bondade ao extremo.

Zé Miguel nasceu pobre. Viveu na pobreza extrema. Perdeu os pais ainda cedo.

Ainda se lembra, quando do seu décimo aniversário, durante aquela festinha singela, preparada com todo carinho pela mãe, que Deus a tenha, a pobre sentiu-se mal, não teve tempo de levá-la ao hospital, quando morreu ali mesmo, num piscar de olhos, foi um mal súbito, não diagnosticado pelos médicos.

O pai veio a falecer dois anos antes. Vitima de um infarto fulminante. O pobre despediu-se da vida antes de completar a maior idade.

Mesmo assim Zezinho era feliz e bem o sabia. Aos vinte anos cuidava sozinho de uma rocinha perdida onde Judas perdeu as botinas.

Era ele quem ordenhava as vacas. Tratava da porcada faminta. Dava de comer às galinhas. Morava numa casinha pequenina. Onde não conheceu o amor.

Assim passeavam os dias. Naquela vidinha singela. Acordava ao cantar do galo. Era antes das cinco quando se punha de pé.

Antes das cinco da tarde poder-se-ia vê-lo assentado a um banco de pedra, uma laje dura de granito, à beira da estrada, admirando o sol se pôr.

Assim passaram-se os anos. Com eles os desenganos.

Zé Miguel envelhecia a olheiras vistas.

Ao chegar aos sessenta anos, completos naquele mês de outubro, quando o mundo inteiro tentava se recompor da tal pandemia, uma virose que dizimava vidas, eis que Zé Miguel, finalmente conseguiu se aposentar. Por tempo de serviço. Não por idade.

Era mais um motivo de felicidade. Já que ele sempre se considerou feliz. Mesmo a mercê das adversidades.

Mais dez anos se passaram. Zé atingiu setenta anos. Ainda rijo como cabo de enxada. O trabalho não o intimidava.

Naquela sexta-feira, da qual se lembra sem saudades, recebeu um aviso da previdência.

Zé, você precisa comparecer a uma casa bancária. Onde você recebe a aposentadoria. Para comprovar que ainda está vivo.

Zé acordou preocupado. Olhou-se no espelho. Beliscou o cotovelo. Abriu e fechou os olhos. Tomou um cafezinho requentado. E foi a cidade montado na mula de estimação.

Uma vez apeado da montaria, uma cavalgadora tal e qual certos candidatos à eleição, teve de enfrentar uma multidão, que se formara debaixo do sol do meio dia.

Zé quase desistiu de esperar. Mais de quatro horas se passaram. O banco ameaçara fechar as porteiras. Até que, afinal, chegou a sua vez.

Depois de pegar a senha, que lhe permitia chegar ao gerente, para atestar, finalmente que ele estava vivo, ao passar por aquela porta giratória, que trava ao menor sinal de metal, ela empacou como uma mula manca. Que se recusa a passar no mata-burro.

Mais um percalço na vida do pobre Zé Miguel. Que ele venceu galhardamente.

Lá fora a fila ainda dobrava quarteirão. Os mais velhos tinham preferência. Uma pobre anciã veio a falecer naquele minuto. Foi morte instantânea.

Quando chegou a hora do Zé o sistema saiu do ar. E não foi possível conseguir a sua prova de vida.

Naquela hora ingrata Zé perdeu a paciência. Entrou de mula e tudo na casa bancária. Que não empacou como de costume.

Cara a cara com o funcionário, que suava em bicas escorridas, lívido, branco como algodão, Zé, numa atitude desequilibrada, esmurrou-lhe a fuça.

Foi preso por agressão a um funcionário público. Passou duas noites e dois dias no xilindró.

Ainda hoje, quando lhe perguntam o acontecido, ele responde, num muxoxo inaudível: “aquele foi em verdade um dia de fúria. Ainda não sei se ainda estou vivo”.

 

 

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