Só se for de muita precisão

Como os tempos mexem com a gente.

Dantes não nos preocupávamos com o porvir.

A gente, meninos ainda, indiferentes ao que estava pela frente, só pensávamos em brincadeiras. De rodar pião, jogar finca e bete, pular amarelinha, cricar bolinhas de gude. E, a hora de fazer nosso dever de casa, quem diz que nossa mãezinha nos encontrava? Estávamos jogando pelada naquele campinho cambeta. Fizesse chuvarada ou o sol brilhava. Com nossos amiguinhos metidos a anjinhos até que uma surra bem dada os fizesse despertar para as lições de casa que a professora ensinava.

Ter juízo ainda não entrava em nossa cabecinha ocada. Éramos meninos ainda. Curtindo os melhores anos de nossa vida. Nem de longe imaginávamos ser adultos. Já que a juventude nos acenava de mãos estendidas.

Pena que um dia crescemos. Deixamos nossas calças curtas guardadas no armário de nossas lembranças. Nossas lembranças ainda eram poucas. Já que vivemos apenas uma pá de anos.

As preocupações eram minguadas. Aprendemos a tabuada. Pelos números não me afeiçoei. Como pelas letras me enamorei.

O tempo passa. Tornamo-nos adultos responsáveis. Ajudamos a constituir família. Filhos dependem da gente. Benditos netos que nos sucedem.

Uma vez idosos nossas precisões se resumem a quase nada. Temos de ir ao médico antes que as doenças nos joguem em definitivo na cama de um hospital.

Já de mais idade nossas necessidades aumentam. Não mais somos capazes de caminhar sozinhos. Temos de nos abengalar e andar devagarinho. Aproveitar o tempo que nos resta. Já que não sabemos quando iremos partir.

Nossas precisões se reduzem no decorrer do tempo. Carecemos um cadinho apenas de afeto. Que não nos deixem sós à hora de dormir. Que nos tratem com carinho. Que não se esqueçam de tudo aquilo que fizemos a vocês, filhos ingratos.

Uma vez idosos perdemos a vaidade. Lá vai idade, somam-se anos aos nossos desenganos.

Já não fazemos mais aniversários. Deixamos as festas aos nossos netinhos.

As nossas carências se amontoam. Não mais somos capazes de assoprar velinhas por medo de incendiar a sala.

Só se for de muita precisão deixamos a pressa nos afoguear. Temos muito tempo de vida e um cadinho só para continuarmos a viver.

Não devemos deixar pra depois o que se deve fazer agora. O depois pode não acontecer e o agora deve ser aproveitado ao máximo.

Só se for de muita precisão devemos sair à rua. Cuidado na travessia, um carro apressado pode abreviar-lhe a vida. Não tenha pressa, devagar se vai ao longe.

Coma devagar. Antes que seus dentes não dêem conta de mastigar.

Já fizestes de tudo um pouco. Agora o pouco que nos esta pode ser muito peso para nossas forças exíguas.

Não se apoquente com o amanhã. Viva o hoje em intensidade plena.

Só se for de muita precisão vai mais depressa. O tempo escorre rápido na sua idade.

Já não tens mais vinte anos. A infância te olha bem distante.

Vive na saudade. Curta a sua idade. Escorrem os anos. Não se preocupe em viver muitos anos mais. Torne o agora, nessa hora que passa. As melhores que já viveu.

E se despeça da vida quando ela perder o sentido. Uma vez chegada a sua hora esteja preparado. Afivele suas malas, abrace aos que lhe são caros. E não se avexe em dizer adeus.

 

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