Nada como não ter um dia depois do outro

Hoje, dia dez de outubro, seco, um ventinho frio saltava no ar, desci a rua pensando na vida.

O sono, como de costume, foi curto, do mesmo tamanho da pequenez de um grão de arroz, daquele tipo ¾, de preço mais acessível, que quase nunca se encontra nas gôndolas dos supermercados.

Acordei sem ter dormido direito. Algo estranho martelou-me o pensamento, não foi um pesadelo, nem sonho. Ao sair dos muros altos do condomínio onde moro, depois do sábado quando aconteceu o lançamento de mais um livro, o de número 15, com presença alvissareira de mais de trinta leitores, muitos se converteram em compradores de livros, falta-me muito mais da metade, tomara fosse apenas a metade, para desafogar o espaço debaixo da escada da casa onde moro, senti o hálito frio da manhã.

O termômetro da pracinha fincada logo abaixo da rua por onde passo, diuturnamente, sinalizava, com seus números de cor vermelha, mais ou menos quinze graus centígrados.

Arrependi-me de não ter levado um agasalho. Mas, ao olhar o sol resplandecente, o céu sem nuvens envolventes, desfez-se-me o arrependimento, para ceder lugar a uma sensação de calor, algo inefavelmente saboroso, como o gosto doce de laranja da ilha na safra.

Antes de chegar ao consultório, naquela hora madrugadeira, antes das seis da manhã, poucas padarias estavam de fornos abertos, passei por uma senhora caminhando rápido, exercitando-se antes de começar o dia, que, ao se enveredar por outra rua, me deixando solitário com minhas próprias pernas e pensamentos que vagueiam, despediu-se de mim com um agradável “vai com Deus”!

Eu penso que Ele me acompanhou, mesmo sem mostrar presença, durante não apenas a caminhada curta, como tem me acompanhado pela vida inteira.

Agora, ao chegar a minha oficina de trabalho, lugar nesta hora vazia, prédio todo entregue apenas aos meus pensamentos, quando a inspiração toma conta do âmago que se esconde dentro de mim, ao alimentar os peixes do meu aquário, piscina esta que não me serve para nadar, e sim para contemplar o bailar dos seus moradores, agora em número de apenas três, os únicos sobreviventes heróicos, assisti, enternecido, a um dos peixinhos se despedindo da vida.

Era um pacuzinho filhote, com um porvir imenso, muito mais que o meu, que já passa em muito da metade, tomara se alongue bem mais do que viveu meu pai, a idade em que faleceu minha mãe pode-se dizer que seja satisfatória, um dia os encontrarei onde estiverem, não sei onde, talvez no espaço etéreo que se chama céu, peixinho este agonizava, nadando com nadadeiras lentas, bem próximo à superfície da água, respirando com extrema dificuldade.

Até agora não sei qual a atitude tomar. Se o deixo morrer ali mesmo. Ou se o retiro da água, coloco-o numa bacia rasa, e o observo partir rumo ao céu dos peixes, quiçá seja um lugar cheio de água limpa, como a alminha daquela criança que um dia partiu deixando um vazio enorme em seu lugar.

Sempre que o dia termina, tenha sido bom, razoável, ótimo ou ameno, penso de novo no dia seguinte. O que vai acontecer amanhã, depois de depois de amanhã, ou num dia inserido no futuro, sei que se deve viver o presente como se fosse o último dos repentes, faço uma breve oração de agradecimento. Oro por minha família, pela saúde da minha esposa, pelo sucesso dos meus filhos e genros, agora outro personagem entra na história, meu queridíssimo netinho Theo, continuação de vida que me conforta naqueles dias escuros, não como o de agora, e sim aqueles de sol encoberto, cinzentos, desconfortáveis, que de quando em vez acontecem.

Um dia esperava o ônibus na zona sul da cidade. Acabara de atender num posto de saúde conhecido pelos médicos especialistas que ali passam tempos tentando salvar vidas, embora com apetrechos inadequados.

O atendimento foi como de hábito veloz como o raio que cai na terra deixando sua marca de queimada.

O último atendimento do dia foi um senhor, debilitado por voraz e pertinaz enfermidade.

Quando o chamei pelo nome, nem me recordo qual era, uma pessoinha escura, frágil, ombros vergados sobre o peso da idade, mercê de enfermidade em fase terminal, adentrou-me sala adentro. Foi preciso abrir-lhe a porta, puxar a cadeira, para que ele se pusesse confortável.

A inquisição foi frugal. O pobre desenganado paciente mal conseguia articular palavras. Emitia sons quase inaudíveis, uma vozinha fina e rouca emergia-lhe das cordas vocais.

A muito custo, depois de execitar-me a paciência, depois de um exame sumário, enfim cheguei ao diagnóstico. O pobre idoso padecia de um câncer de próstata avançado, metastático, que lhe havia tomado os ossos todos, além de muitos órgãos importantes.

A micção era feita artificialmente. Uma sonda definitiva emergia-lhe pelo abdome. Outro stoma lhe fazia parte da alimentação. Comida sólida, ou pastosa, via boca, não sabia o sabor, de tempos atrás.

O aspecto defuntício era fragrante naquele corpicho descarnado, ossos a mostra, músculos ausentes, dentes em perfeito estado, talvez fossem eles o derradeiro troféu que o sucederia post mortem.

A consulta terminou como começara. Sem perspectiva de melhora. Fiz uma receita de medicamentos para atenuar-lhe o padecimento. Nada mais poderia fazer, a não ser rezar para que uma força superior o levasse logo, a exemplo daquele peixinho moribundo.

Minutos depois, assim que cheguei ao ponto de ônibus, quase à hora do almoço, avistei, com estes dois olhos que enxergam tanto, o mesmo velhinho olhando as cercanias com olhos perdidos no nada.

Não consegui tirar dele nenhuma palavra. Ele mal respirava. Arfava com enormes dificuldades. Acredito que esperava avidamente a chegada da morte.

Depois que a lotação partiu ele ficou à espera de outro ônibus. Pra onde, não sei.

Foi quando pensei, ao ver tanta gente desenganada, no aguardo do rabecão escuro, guiado por cavalos negros, como aquele pobre senhor, gasto pelos anos e pela doença consumptiva, nada como ser a favor da boa morte, praticada com critério seguro, a tal eutanásia consentida antes.

Para aquele senhor terminal, vivendo ao sabor de desenganos, experimentando nos lábios ressequidos o sabor amargo dos dias que lhe restam, nada como não ter um dia depois do outro. Fica aqui a minha mensagem final.

 

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