Mudei de casa, de roupa, não de saudades

Difícil se torna aceitar a rotina.

Levantar-se todo dia à mesma hora. Ir ao banheiro, lavar o rosto, escovar os dentes, quando ainda os temos, pentear os cabelos desgrenhados, os meus quase se foram todos, restam alguns fios nas têmporas, assentar-se ao vaso sanitário, esperar um tempinho para exonerar intestino e bexiga, vestir a roupa debruçada à poltrona-cabide, dar uma vista d ‘olhos nas tarefas do dia, sair de casa pela porta dos fundos, já que a da frente enguiçou no dia de ontem, tomar um cafezinho magro no botequim que vende fiado, descer pela mesma rua de sempre, e, ao chegar ao trabalho, mais rotina, mais atropelos, em nosso cotidiano de médico cronista.

Foi assim que tenho vivido nos últimos quase dez anos de minha vida.

Depois de morar em um bairro próximo do meu passado, que ainda me corteja com olhos de nostalgia, acabei por me mudar para outro, mais longe de onde estou, pertinho da rodoviária, quase na saída da cidade, lugar onde pretendia passar até o meu passamento, adorável morada de gente tida como rica, alguns em verdade os são, outros perderam o título de notáveis senhores de engenho, agora nada mais são do que trabalhadores normais.

Foi ali, entre muito verde, entre muros quase indevassáveis, que aprendi a usar as pernas com maestria. Fiz delas rodas. Instrumentos nos quais ainda confio, mais do que naqueles motores que por vezes emperram, poluem, fazem barulho, aquecem, deixando as cidades com ares de procissão emperrada como acontece na semana santa, em longos cortejos que não levam a lugar algum.

Foi ali, em agradável convívio com pessoas amistosas, a maioria, creio eu, onde passei poucos anos da minha vida de ancião menino.

Por falar em menino, com que simpatia e cordialidade eles me tratam.

Ainda me recordo, gratas recordações, quando estes mesmos meninos, os quais bem poderiam ser netos, ou filhotes, me alcunharam de “atleta poeta”.

Sei que dentre em breve vou me mudar daquele condomínio, pioneiro em minha querida Lavras.

Vou me juntar a um naco da minha família que ainda vive aqui. Ficarei pertinho do primeiro neto. Talvez a juventude dele opere milagres dentro do idoso que tenta morar dentro do meu eu.

Quando me mudar daquele pouso encantado, quando tiver de me apartar dos amigos que ali deixei, assim que me despedir daquelas avenidas largas com nome de árvores e de flores: acácia, magnólia, flamboyant, ipê, palmeira, que cedeu graciosamente o nome àquele logradouro magnífico, vou sentir saudades.

Não sei de que, ou de quem, vou sentir mais.

Se das árvores, dos passarinhos que ali fizeram ninhos, da velha seringueira desterrada, dos gatos que perambulam noctívagos, dos cães que são impedidos de andar à solta, fora da coleira dos seus donos, daquele clube de sonhos, onde montaram uma pequena academia, feito meritório do sindico de então, daquela piscina enorme que afasta os frequentadores em tempos de inverno, daquela sauna quentinha por vezes lotada de amigos fraternos, do parquinho de diversão que ainda faz parte de um passado longe, de tantas e tantas visões idílicas, não sei o que mais vai me fazer falta, quando me mudar de lá.

Sobre as pessoas com quem aprendi a conviver a viver bem, todos merecem uma atenção a parte.

Vou sentir falta, por que não saudade, do jardineiro que virou flor, caboclinho madrugador, que de quando em quando dá um jeito no meu jardim.

Sentirei falta dos guardiões da portaria.

São eles que levantam o pau, e permitem a entrada de carros, nunca me deixaram do lado de fora, pois quase não ando de auto.

O profeta magricela, esperto, que adora ler a bíblia, não sei se ele passeou os olhos em algum livro de minha autoria. De quando em quando ele se transforma em cuidador de cães, e lavador de carros, não preciso declinar seu nome – todos o conhecem e respeitam.

O jovem, de cor escura, alma branca, sempre de sorriso aberto, ainda atende como eletricista, inspira simpatia.

Vou sentir falta de outro mestre da portaria. Afável, resposta rápida como um raio, como eu adora ovo vermelho da galinha vermelha de um vizinha trabalhadeira.

Sentirei falta de um sujeito claro, de mal com a balança, que um dia me disse ter nascido nas bandas onde tenho um sítio.

Vou sentir saudade, um cadinho de nostalgia, de outro sujeito, serviçal, pau para toda obra, que além de porteiro faz às vezes de segurança. Outra gente boa.

Cuidando da varredura daquelas ruas largas, convidativas à caminhada, ou corridas, ou seja assoprando com o assoprador as folhas mortas, chegou a vez e a hora do meu amigo Sorriso.

Quando carece de chuva solicito que ele pare de mostrar a dentição perfeita. Quando preciso de sol, peço a ele que sorria.

Vou sentir falta dos seguranças que durante as noites velam por nosso sonho. Para eles não importa o frio, o vento de agosto, as chuvas de verão. Eles caminham, param, descansam, sem descansar.

Sei que dentro em breve vou dali me mudar. Não para muito longe.

São tantos os nomes, que gostaria de declinar, tantos amigos que vou deixar, por esse motivo peço perdão se me esqueci de alguém.

Esqueci-me de nomear. Mas não me esquecerei jamais das suas figuras singulares, dos seus jeitos camaradas, das suas pessoas admiráveis.

Um dia vou me mudar de casa. De roupa, de lugar.

Dizem que a vida seria insustentável não fossem as mudanças.

Acontece, daquele condomínio maravilhoso, caso em verdade tenha de me mudar, atrevo-me a confessar: “vou sair de lá. Com o peito recheado de saudade. E desejo de voltar”.

Um comentário sobre “Mudei de casa, de roupa, não de saudades

Deixe uma resposta