Não debrucem sobre meus ombros o peso do mundo

Hoje, como de costume, deixei a cama bem cedo em devaneios com seus lençóis. Abri a janela, era antes das cinco da madrugada, dia encoberto entre nuvens, naquela hora temprana senti uma dose fresca de frio sobre minha pele emersa da noite, observei a seringueira se espreguiçando, fazendo um bocejo, deitando, com seu hálito verde as folhas mortas de pouco, e deu vontade de perguntar àquele pobre vegetal, ali plantado por alguém que ama a natureza, mal sabia ele qual a vontade da seringueira, árvore desterrada, que, certamente, indubitavelmente, gostaria de daquele canteiro enfiado perto da janela do meu quarto de dormir levantar asas, como se árvores fossem dotadas de asas, devaneio meu, em retorno à companhia de suas irmãs iguais, em direção à floresta amazônica.

A ela desferi uma pergunta em voz baixa, uma questão que me atormentava desde a poucos dias atrás, qual seria o peso do mundo? Não recebi de pronto a resposta. Talvez o nobre vegetal, infeliz pela situação atual, longe de suas irmãs, filhas, por que não netos, considere o peso do mundo pesado demais para que seus galhos finos, seu tronco idoso, morada de cupins e parasitas, o carregue sem deixar o pequeno canteiro sentindo saudade da seringueira eremita.

Outra indagação passou-me pelos sentidos. Qual a utilidade da noite? O que seriam as madrugadas?

Eu, na idade em que me encontro agora, quase nas barbas de completar setenta anos, meu pai viveu apenas setenta e sete, uma vil enfermidade o levou pra longe de nós, tenho a noite como desnecessária. Passando a noite em branco, embora a cor da noite seja negra como a noite, a gente, os de mais idade, teríamos mais tempo de escutar a voz da mocidade, aquela vozinha que lembra a saudade de quando a gente tinha a mesma idade, caso se pudesse encompridar o dia, não a luz que o acompanha, pois durante a noite desfaz-se a luz, a solução por mim encontrada talvez fosse, contrariando a opinião de quem considera o sono um remédio para se ter saúde, desfazer-nos das noites, vivendo apenas os dias em claridade plena, deixando a lua sem poder ver o sol.

Benditas madrugadas! Como é bom conviver diuturnamente entre elas, pedindo licença à cama, aos lençóis macios, a parceira que continua a dormir ao nosso lado, sair de casa antes que a luz do sol, o calor em demasia, nos ofusquem a inspiração, andando pelas ruas ainda sem muita gente, na calmaria da cidade antes que as pessoas saiam à rua, em busca do pão nosso de cada jornada.

Hoje, primavera em seu debut, antes de deixar os muros de onde moro, fiz questão de perguntar ao porteiro do condomínio, o que estava por assumir a portaria, pessoa gentil, inteligente, quase um profeta, leitor voraz do livro sagrado, qual seria a definição de madrugada? Ele, com aquela sensibilidade nata, respondeu-me, sem muitas elucubrações, que “a madrugada seria uma noite envelhecida”.

Deixei-o falando com a madrugada, desci a rua, naquela hora temprana, antes de ver o sol nascer, a luz do astro rei ofuscar minhas retinas, sensíveis meninas que não suportam a luz do sol, prefiro a turbidez das madrugadas frias.

E por falar no peso do mundo, o quanto seria ele? No que concerne ao peso em quilogramas seria por certo muitos números enfileirados. Não conseguiria nunca calcular na calculadora, não afeita em numerais do meu cérebro acostumado às letras, prognosticar o peso do mundo.

Mas, no pensar imaginando o peso do mundo no quesito da dose imensa de responsabilidades, ao me lucubrar o quanto as pessoas despejam sobre nós as suas ansiedades, seus receios, suas faltas de definições, suas frustrações, seus sonhos não realizados, seus amores inacabados, a saudade estacionada naquele passado que não retorna, mesmo que se deseje muito, seus fracassos, por motivos que não competem a nós converter em sucesso, suas angústias, as quais não fomos nós os causadores do sofrimento, seus desalentos, a vida é assim, a gente, por mais que desejemos, não conseguiremos nunca mudar o curso de um rio, ele vai sempre em direção ao mar, as paixões sem cura, não concordo que se possa curar uma paixão entrando outra em seu lugar, os anseios não convertidos em algo palpável, a vida é uma sucessão de insucessos fecundos, melhor imaginar que depois da tempestade vem uma borrasca imensa, que leva nossos entes mais caros pra longe da gente, como aconteceu com meus pais, pensando tanto, pondo a imaginação a trabalhar, o que seria de mim sem a inspiração vertiginosa de que sou possuído, quase um demônio que me assalta durante as poucas horas de sono, ainda solfejando sobre o peso do mundo, sobre a carga que muitos tentam despejar sobre nossos ombros frágeis, os meus são fortes, não sei por quanto tempo mais, hoje, primavera em seu começo, madrugada que começou fresca, agora o sol quase penetra pelos liames da persiana que tenta vedar a luz que entra pela janela da frente de onde escrevo, ainda sobre o mesmo tema: debruçar o peso do mundo sobre meus ombros, fardo por demais pesado para suportar, nesta altura da minha cansada existência, não sei quantos anos mais vou suportar o peso do mundo, que me poupem, me deixem descansar.

Talvez assim, fazendo o que aprecio, na hora em que quiser, depois de tanto viver, fazendo conjecturas sobre o peso morto do mundo, eu pare, descanse um pouco, e viva feliz sem o peso do mundo às minhas costas…

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