O acumulador

Muitas e muitas vezes passei por aquela casa. Agora vazia. A espera de um novo morador.

Trata-se de uma edificação antiga. Agora ela carece de pintura nova. Alguns remendos se fazem necessários.

Os herdeiros daquela residência, onde vivia, há tempos perdidos na lembrança, talvez pretendam passá-la adiante. Já que todos eles moram fora da cidade. Esta minha linda Lavras que amo tanto.

Ali morava meu velho professor de geografia. Um senhor letrado, circunspecto e andejo, que viveu até quase um centenário, por um hábito costumeiro. Andava sempre. Nunca o vi dirigindo qualquer veículo automotor.

Era comum vê-lo subindo esta mesma rua, caminhando, lentamente, com já seus mais de oitenta, ereto, empinadinho como uma pipa em seu voo rumo aos céus, numa caminhada longa, passando pelas ruas desta cidade, sempre recebendo afagos tanto por sua disposição e elegância, já que era bastante conhecido por todos aqueles que tiveram a honra de serem seus alunos. A exemplo me cito. Naqueles saudosos janeiros, que, infelizmente não voltam mais.

Meu querido professor Osvaldo Louzada Serra, que já havia dobrado esta mesma serra, ascendência portuguesa, com certeza, foi meu parceiro em animadas partidas de tênis junto ao meu saudoso pai, dona Nieta Moreira, usando aquele saiotezinho, que nos permitia antever suas pernas morenas, com suas jogadas geniais.

Naquela subida por aquele morrão íngreme, conhecido por nós, moleques endiabrados, por rua do Mirante, que daqui se avista, a mão esquerda, deparei-me com o portão aberto.

Não me contive e por ali entrei. Lá estava, fazendo o rescaldo, de seus pertences, uma filha ainda exibindo na face os mesmos traços de beleza de quando era ainda jovem.

Moema me reconheceu. Assustou-se à princípio com aquela visita inesperada e inoportuna. Mas depois me levou a percorrer cômodo por cômodo. Andamos quarto por quarto. Passamos por um escritório onde meu querido professor, o qual conhecia o mundo inteiro na palma dos seus pés andarilhos. Antes da despedida, já que estava egresso da academia do LTC, pertinho da casa dos meus pais, Moema me confidenciou: meu pai era um acumulador. Guardava souvenirs de onde passava. Inúmeros troféus na parede estavam fincados. Lembranças ali esperavam, um dia, por alguém da familia que pudesse levar aquela tranqueira, que talvez fosse doada a um museu qualquer.

Não restavam dúvidas de que o professor Louzada de fato era um acumulador.

A história, neste ponto da narrativa, versa sobre outra morada. Era a casa onde cresci. Quando aqui aportei. Neste porto seco das minhas Lavras do Funil.

A rua Costa Pereira era recheada dos Rodartes. Conto nos dedos três deles. A primeira da rua, onde hoje está fincado o edifício Rodartino Rodarte, era onde moravam meus avós. Mais abaixo, pulando três ou quatro residências, morava um tio, Rui, pai do Luiz Carlos do cartório, do saudoso primo Pedrinho, falecido prematuramente. Andando alguns passinhos mais, pertinho de onde morava o tio Rui, vivia eu. A casa de número um cinco dois já foi demolida. Era onde morava a querida Rosinha. Depois do passamento dos meus queridos progenitores.

Ombreando parede por parede, amizade que extrapolava o carinho e a consideração que uniam a nossa familia, a casa do meu saudoso tio Chico, pai da linda Nieta, que ainda cuida do que restou dos meus cabelos, da Nise, e como era linda a minha prima, e ainda o é, do primo Neto, competente e compenetrado angiologista, e, o mais novinho de todos, Negis, causídico que herdou do pai a maestria dos tribunais do júri. Com sua oratória inflamada, suas defesas, se contestadas, aplaudidas mesmo pelos oponentes da área advocatícia.

Creio não me ter esquecido de mais ninguém.

No momento que a casa dos meus pais estava sendo demolida, já que foi comprada por um colega de farda, ali entrava, sorrateiramente, recolhendo sobras do meu passado.

Não havia vivalma naqueles instantes de pura e indelével magia. Era pra mim custoso conter as lágrimas.

Recolhia velhas fotografias. Juntava pequenos utensílios de cozinha que minha mãezinha usava.

Mas, dentre tudo aquilo que levei a minha nova morada, um apartamento amplo, aqui pertinho, livros, compêndios de direito, coleções inteiras de obras fantásticas, entre elas cito Plinio Salgado, Cervantes, Dostoiévski, Machado de Assis, A J Cronin, e tantos outros escritores notáveis, espero, num futuro não muito longe, ser lembrado, como eles, por todos aqueles que tiveram a oportunidade de passarem os olhos na obra de  um tal Paulo Rodarte.

Não restam dúvidas que me pai era um acumulador. Ele ajuntava livros. Era ele um profícuo e letrado leitor.

 

 

 

 

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