Eu mato não sei quantas

“As dificuldades são para serem superadas”.

Assim dizia um amigo meu.

Concordo com sua assertiva. A cada dia um problema. Um pepino a ser descascado.

Precisamos de força e coragem para vencer os obstáculos que se interpõem em nosso caminho.

Pedras existem para serem puladas. Rochas enormes podem desabar. Pedrinhas pequenas descem pelas nossas vias urinárias. E como doem as danadinhas.

De cálculos em cálculos renais vive o urologista. Não são os cálculos que os profissionais da engenharia fazem. São pedrinhas que se desprendem lá do alto, algumas empacam, e têm de ser retiradas a fórceps. Nos tempos idos as operações se sucediam. Incisões enormes tatuavam a região lombar dos pacientes. Quantas marcas eu deixei. Elas até hoje enfeitam a pele daqueles sofredores portadores de cálculos renais.

Deixando estas pedras do lado, são outras pedras que gostaria de comentar. São percalços que a gente encontra pela frente. Adversidades que nos fazem atravessar. Da mesma maneira que o rio tenta chegar ao mar. Fazendo curvas, tentando se esquivar dos dejetos que o homem lança em suas águas revoltas. Que se revoltam provocando alagamentos, enchentes que atormentam. Tragédias como as que têm acontecido.

A cada dia um incômodo a ser vencido. Ontem foi a conta da gasolina que subiu como um foguete. Trasanteontem a do gás que mantém o fogão desligado. Um dia deste, não faz tanto tempo assim, foi aquela doença que parece não ter fim que enlutou aquela família de tantas bocas a alimentar.

De imbróglio e perturbações a gente vive. Não há um dia parecido ao dia de ontem.

De tempos pra cá aprendi a contornar percalços. Pulo aqueles que encontro pelo caminho. Se não consigo atravesso a rua. Mudo de passeio. Mas são tantos que por vezes não consigo. E tenho de recorrer àquela que dorme ao meu lado.

A minha adorável esposa é mestra em descascar pepinos. Enfrenta-os com o estoicismo dos fortes e bravos que não se costuma exaltar.

Já eu, nesta altura da minha vida, quando encontro uma pedra no meu caminho, simplesmente finjo que ela não existe. Faço de conta que se trata de uma miragem que se desfaz quando fecho os olhos.

Matar um leão a cada dia tem sido corriqueiro em nossa rotina. E muitos não têm medo do tal leão. Dizem que ele é banguela. Faltam-lhe todos os dentes da arcada superior. Na parte de baixo apenas uma gengiva vermelhinha como tomate maduro.

Este leão não ruge. Apenas ronrona com um gatinho manso.

Conheço um amigo, de longa data, hoje ele conta com mais idade que o velho Matusalém, que costuma encontrar comigo quando volto da minha rocinha perdida onde a vista não alcança.

Seu Zé, que um dia esteve internado num hospital, por causa de um mal súbito, logo se recuperou e voltou a empunhar a enxada. O trabalho pesado sempre fez parte de sua vida sofrida.

E ele jura que nunca vai deixar de trabalhar, a não ser que a morte venha lhe buscar. Naquela hora fatídica Seu Zé diz que vai se amoitar por detrás da bananeira nos fundos do quintal. E de lá não sai nem com reza mansa.

Naquele sábado, era tarde, quase noite, quando passei por ele, seus olhinhos escuros quase se fechavam, parei um cadinho para saber noticias de seu estado de saúde.

“Seu Zé, tá tudo bem? O senhor esta tomando os remedinhos? E ainda sente aquela dor no peito? E como vai as moda? Tudo nos conformes? Como tem enfrentado as dificuldades nos dias de hoje? O preço do arroz subiu as alturas. O feijão anda na contramão de nossos ganhos. A aposentaria mal da para suprir as mínimas necessidades. E a chuva? Amigo Zé. Como tem chovido. A roça de milho ameaça mofar. As vacas atolam na lama. Tirar leite, com essa barreira, é tarefa ingrata. Ontem mesmo faltou energia. O leite azedou. E a renda cada vez mais pouca, não temos como nos sustentar. A cada dia a gente tem de matar um leão. Ontem mesmo o caboclo que arrenda as minhas terrar me disse que matou duas cobras com uma enxadada só”.

Seu Zé, coçando a cabeça, com um sorrisinho maroto a enfeitar-lhe as bochechas, terminou nossa prosa com isso: “quer saber? Eu já matei tantas que até perdi a conta. E aqui estou, com meus quase cem anos, disposto a matar tantas outras. A vida me ensinou que as intempéries são para serem vencidas. A cada obstáculo a gente pula. Evita, se puder. E se não puder enfrenta. Espero assim continuar a viver. Até um dia me chamarem para contornar as dificuldades lá no céu”.

Dali sai bendizendo a vida. Ah!, como gostaria de ser como Seu Zé.

 

 

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