Já vivi demais

Não restam dúvidas que a expectativa de vida está aumentando.

Nos tempos dos meus avós não se passava dos cinquenta. Década a década, tempos mudando, vive-se cada vez mais. Torna-se quase comum verem-se velhinhos abengalados, dançando forró, a passos que exigem força nas pernas, grudados às suas senhorinhas, ambos com mais de um centenário.

Explicações existem para tal evolução. Qualidade de vida é uma das questões. Medicamentos novos são inseridos no receituário. Hábitos de vida mais e mais saudáveis fazem parte da maior longevidade.

De vez em quando aparece no meu consultório um destes velhinhos. Ontem mesmo apareceu um deles.

Ele veio só. De audição capenga quase não escutava o que minha colaboradora dizia. Foi preciso quase um intérprete para completar sua ficha.

Para viver uma vida longa mister se faz viver com clarividência e saúde. O prazer deve ser inserido a outras qualidades. Quando se perde a felicidade, entregues a um leito de hospital, de olhos semiabertos, como um zumbi,  moribundo, melhor deixar a vida para outro qualquer. O mundo está cada vez mais apinhado de gente. Viver é necessário. No entanto morrer é consequência. Não um ato falho.

Aquele paciente de ontem, de nome Benedito, já ultrapassou em muito os oitenta anos.

E ele ainda é capaz de cuidar de uma rocinha no município desta cidade. Anda a pé. Com a desenvoltura de um jovem. Não tem vícios maiores. Pita um cigarrinho de palha quase sempre apagado. Bebe leite mas não renega uma boa cachaça.

Depois das apresentações de rotina, sabendo quem ele era, já que eu já era seu conhecido, por indicação de um amigo, ele apresentou seus queixumes.

“Doutor, felizmente está quase tudo bem.  Mijo quando me dá vontade. Durmo ao cantar do galo. Acordo ao nascer do sol quando a luz entra janela adentro do meu quarto. Tenho a disposição de dantes. Posso até dizer que estou melhor agora que quando mais moço. Só que, uma questão me apoquenta. Aquilo que subia como um balão agora não passa do chão. Tenho o prazer de antanho. No entanto não consigo uma boa ereção.”

Depois de levá-lo a mesa de exame, e constatar que tudo ia mais ou menos bem, fora uma próstata suspeita, de não estar nada bem, seria um câncer de fato, só precisava comprovar a suspeita, expliquei ao seu Benedito a dúvida que me atormentava. Seria preciso fazer uma biópsia para comprovar o diagnóstico exato.

Foi quando ele suspirou profundamente. E me disse com aquela calma de quem já viveu além do que previa.

“Doutor, já vivi demais. Agora estou nos descontos. O que vier pra mim é lucro. Deixe-me viver curtindo o tempo que me resta. Não desejo saber qual a doença vai me levar à sepultura. Pretendo viver um cadinho mais. Quando tiver de partir que seja num dia ainda não inserido no calendário. Por isso lhe peço. Receita-me um remedinho para melhorar meu desempenho sexual. É só o que desejo. A vida pra mim deve ser vivida com qualidade. O dia em que tiver de morrer que seja feita a SUA VONTADE. Já vivi demais. Por favor, que me deixem morrer em paz”.

Não tive como não concordar com aquela pessoinha linda. Um exemplo a ser seguido. Como foi o meu saudoso pai.

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