Pra ele tudo são flores

Por vezes acordo pensando na vida.

Como ela, por vezes, tem sido espinhosa.

Não para mim. Felizmente. Tenho apenas de agradecer não só o presente como o passado que me foi oferecido ao nascer.

Hoje conto com setenta e um anos completos no finado dezembro. Ao final deste ano estarei setenta e dois anos.

Quantos anos mais me restam? Não sei. Nem sequer imagino e nem quero saber.

Se um dia tiver de me despedir, com certeza, tomara seja num dia trinta de fevereiro. Nunca num dia como este. Céu azul, sol a brilhar desde cedo, quente o bastante, deve esquentar mais ainda no decorrer do dia. Tem chovido durante a noite. Cidades sofrem mercê de alagamentos.

Aqui, em nossa Lavras querida, quase nada de ruim acontece. Fora algumas ruas cheias de água, alguns bueiros vomitando as sobras das chuvas, no entanto, pessoas ao desabrigo, fora algum equívoco de minha parte, felizmente são acidentes fortuitos, nestes tempos de chuvas intensas.

Posso dizer que sou um otimista de plantão. Pra mim a vida sorri. Até então.

Fora algumas doencinhas de pouca monta, algumas vezes fui ao hospital, por uma cólica renal. Mas nada de grave me aconteceu. Oxalá, queiram os anos que continue assim.

Tenho um amigo chegado. Seu nome é Manuel.

Vizinho de pasto. Como ele divido as cercas da minha rocinha prejuizenta.

Nunca tivemos um entrevero. Pessoa afável, sempre sorridente.

Na última vez que nos encontramos, numa curva do caminho, lá estava ela carpindo uma moita de espinhos.

De foice na mão, enxadachim de primeira, Seu Manoel me cumprimentou sorrindo. Dentro de sua banguelice brejeira pensei ter ouvido: “pra onde vai? Por que tanta pressa? A vida é curta. Pare um cadiquinho”.

Um tanto afogueado, pelas agruras da vida, na cidade as contas me atazanavam, a renda mal dava para cobrir as despesas, dei pra mim um minuto para prosear com meu vizinho.

“Manoel, a vida tem sido dificultosa nestes tempos de pandemia. O ano mal começou. O povo anda sem dinheiro. As chuvas tem sido catastróficas. Pelo país inteiro. O desemprego subiu às alturas. De um prédio de muitos andares. Hospitais lotados indicam que a pandemia está longe de terminar”.

Naquele interim da conversa Seu Manoel permaneceu calado. Apenas ouvia meu rosário de queixumes.

Durante quase meia hora falei apenas eu.

Seu Manuel, com a foice encostada, com a enxada escorada num barranco, suando em bicas pelo calor da hora, quase não manifestava a sua opinião.

O relógio adiantou-me que seria quase meio dia. E eu tinha voltar à cidade.

A nossa prosa estendeu-se mais que deveria. Tinha pressa. Infelizmente já se fazia tarde.

Despedimo-nos como velhos amigos. Ainda me lembro do que ele me disse.

“Olha doutor. Tenho quase o dobro da sua idade. Já tive pressa. Fui um adulto sempre a caça de trabalho. Não acumulei posses. Tenho o suficiente para viver dentro dos meus conformes. Pra mim tudo são flores. Apesar de saber que podemos encontrar espinhos pelo caminho. Pra me apoquentar com o futuro? Se tenho o presente com que sempre sonhei. Caso me depare com espinhos pelo caminho procuro um atalho. E sempre chego ao mesmo lugar.”

Deixei o amigo Manoel entregue a sua sabedoria. Por que não procurar o que restou da minha? Talvez a encontre na mesma curva do caminho. Escondidinha dentro de uma moita de flores. Sem me preocupar com os espinhos…

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