Como se fosse possível

Dentro das possibilidades tento fazer o que me apraz.

Se pudesse, e minha responsabilidade permitisse, jamais deixaria a cama, nestas madrugadas frias.

Infelizmente ainda tenho de trabalhar. Ficar em casa, assistindo o tempo passar, ou vendo as notícias ruins pela televisão, ou esperando a tarde chegar, a noite me fazer descansar, de quê? Indago-me. Se nada fiz não mereço o descanso. O trabalho enobrece o homem. O descanso é para quem tem o suor empapando-lhe a face.

Como se fosse possível, nestes tempos de pandemia, ficar em isolamento, confinados como bois em período de engorda, a espera da hora da compra pelo abatedouro.

Como seria possível, a um homem, pai de família, ficar a espera de dias melhores, sendo que estes não aparecem todos os dias. É preciso ir à luta. Procurar trabalho. Continuar a correria de todos os dias. Pois o descanso deve ser apenas ao final do dia. Quando o tempo permitir. E nem sempre isso é possível, pois a vida continua, apesar de um dia termos de descansar, quando a morte vier nos buscar.

Como se fosse possível viver das benesses de terceiros. Já que esmolas não são dadas de bom grado. E viver recebendo migalhas  não nos faz bem a alma. Isso me disse um pedinte, um dia à porta de um banco.

Como se fosse possível, ou até mesmo aprazível, continuar a viver como se a vida fosse apenas flores, e não existissem espinhos pelo seu caminho tortuoso.

Como se fosse factível, penso ser indecoroso, viver continuadamente a espera de dias melhores, como se eles existissem neste mundo onde vivemos, sem o nosso esforço de cada dia.

Como se fosse possível, ou até mesmo viável, ficar a espera de que a tal pandemia termine, se estamos apenas no começo de tal enfermidade.

De vez em quando me pergunto: “seria possível atravessar o deserto sem água o suficiente para tal travessia”? Ou iremos morrer de sede no meio do caminho?

Seria em verdade possível atravessar a crise em que estamos vivendo sem nada fazer para mudar o status quo? Ficar em casa nada resolve. Mesmo com o risco de sermos contaminados.

Bem sei que sou considerado grupo de risco. Embora não tenha nenhuma doença que contribua para adquirir tal virose estou em maior idade.

Como se fora possível ficar, num dia lindo como este, enfurnado dentro de casa, com a cabeça coberta, sem poder respirar o ar das madrugadas.

Bem sei que nem tudo é possível. Que devemos ser prudentes. Mas, já que não viveremos eternamente, vale o risco. Viver a vida já é um risco calculado. Respirar é preciso. Viver é mais do que necessário.

Como seria possível, pra mim, dotado de enorme sensibilidade, não me condoer da dor dos outros. Creio que não seria possível, para nenhum de nós, viver sem a luz do sol, sem olhar as estrelas, sem sentir o perfume das flores, sem amar, sem amor, não se vive.

E vegetar não faz parte de mim. Pretendo viver por muitos anos mais. Com a mesma clarividência de sempre. Com o mesmo tirocínio de agora.

Ainda penso ser possível continuar retratando o que se passa dentro de mim. Pois a vida continua. Embora muitos já tenham perdido a razão de viver, eu continuo a perseguir os meus sonhos.

 

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