O dia em que Seu Geada enregelou

E como fazia frio naquela madrugada de outono.

Tudo amanheceu branquinho.

Acostumado às agruras do tempo, a acordar cedo, aquele senhor, dobrado em anos, acordou depois de uma noite fria.

A temperatura do lado de fora da casa oscilava entre cinco e seis graus.

Do lado de dentro, graças às achas do fogão a lenha que ainda crepitavam, a temperatura era mais acalentadora.

Depois de tomar um cafezinho requentado, de passar pelos dentes um naco de pão amanhecido, Seu Geada, embrulhado num cobertor, saiu de casa por volta das cinco e meia.

Lá fora a pastaria estava coberta por uma camada fina de gelo. Parecia neve. Embora não fosse fofa como deveria ser.

Acostumado às inclemências do tempo Seu Geada estranhou aquelas baixas temperatura em pleno outono. O inverno ainda se fazia distante.

Era hora de ordenhar as vacas. Eram em número de vinte e oito. Daquelas tetas recheadas de leite quentinho aquele senhor tirava seu sustento. Enviuvara há pouco tempo. Não tiveram filhos.

Vivia feliz acostumado a solidão. Tinha pelas ruminantes verdadeira afeição. Poder-se-ia dizer amor.

Naquela manhã de uma terça-feira, começo de junho, convivendo em meio a uma pandemia, tudo lhe causava medo. Por sinal a idade já era bem avançada. Naquele ano de dois mil e vinte completou exatos oitenta anos.

Tinha saúde a emprestar aos outros. Nunca precisou procurar a ajuda de um médico. A não ser por uma gripezinha que por sinal não passou de um resfriadozinho maroto. Logo se viu livre dele. Graças a um chá de folhas de limão. Receita de uma comadre que morava perto.

Em poucos dias já estava prontinho às tarefas habituais. Experto que era em tirar leite de vaca. Embora sem entender o porquê de o leite ser branco e a dona vaca ser pretinha como anu caído num balde de piche.

Naquela manhã de outono, céu azul, sol frio, Seu Geada, lá pelas dez da manhã, já estava com o leite pronto a ser levado pelo caminhão leiteiro. O preço pago pelo litro de leite era ridículo. Menos de um real. Importância que mal dava para pagar por uma garrafa d’água mineral em qualquer supermercado.

Mesmo assim ele era feliz e bem o sabia.

Acontece, que ao cair da noite, a temperatura desceu ainda mais. Lá pelas nove da noite o termômetro mostrava cerca de cinco graus negativos.

Mesmo aquecido pelo fogão à lenha o banho naquela tarde foi uma tarefa de meter medo. A serpentina não deu conta de aquecer a água.

Seu Geada mal teve tempo deixar o chuveiro. Foi logo acometido de uma tosse de fazer a respiração faltar antes de se deitar.

Naquela manhã gelada Seu Geada não teve coragem de deixar a cama. Ficou por ali mesmo. Embrulhado numa dúzia de cobertores. A temperatura naquela manhã ficava por volta dos cinco graus positivos.

Acontece que as vacas não podiam ficar à deriva. Quem iria cuidar delas?

Foi naquele instante que Seu Geada saltou da cama. Se existe um animal mais dependente do ser humano não devem faltar na lista as vacas.

Mesmo naquela temperatura hostil o bom homem deixou a casa. Sentindo um mal estar. Impróprio de sua condição de gente saudável.

Assim que começou a ordenha seus dedos começaram a enregelar. A ponta do nariz endureceu de vez. Todo o corpo sofria com aquelas baixas temperaturas.

Antes da hora do almoço Seu Geada mal conseguia caminhar.

Foi encontrado por um vizinho durinho da silva. Como uma estátua de gelo. Exatamente como um picolé guardado no congelador.

Até hoje contam, nos arrabaldes, a história, que nem sei se é verdade, de um senhor que foi encontrado congelado defronte ao curral. Todo ano uma romaria de vacas passa por ali. Em honra e glória de um senhor que enregelou.

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