Causa mortis: solidão

Já vi de tudo como causa de morte. Doenças várias. Acidentes banais. Morre-se de causas desconhecidas. Até hoje não sabidas qual foi o motivo da morte. Apenas sei, e não é novidade pra ninguém, que um dia todos iremos partir. Para algum lugar indefinido. Que tanto pode estar escondido por trás da azulice do céu, quanto na escuridão do outro lado da vida.

Como seria este lugar para onde todos iremos nalgum dia? Seria um espaço etéreo. Nevoento? Como no dia que hoje se mostra lá fora? Ou, em contrapartida, seria um lugar de beleza imensurável? Onde anjos tocam suas harpas dolentes? Acompanhados de serenatas de rico lirismo?

Não imagino para onde iremos. Sei que nosso corpo finito é apenas uma carapaça efêmera que guarda por dentro uma coisa indefinida a qual chamamos de alma. Mesmo a sua evidência ainda não foi comprovada bem como a presença de vida após a morte.

Voltando a causa de morte, são várias, a velhice é tida como uma delas.

Mas, entretanto, por vezes se morre antes que a idade provecta chegue. Podemos deixar de viver antes da hora certa. Como é triste ver um pai sepultar um filho. Como nos causa sofrimento perceber, num leito de hospital, um anjinho criança se despedir da vida.

Nestes dias que vi passar pude comprovar que a solidão pode ser imputada como causa de morte. Viver na própria companhia, sem a presença de outrem, não apenas causa angústia como também arrepios.

Bem conheço aquela senhora. Desde quando aqui chegaram, ela e o marido, creio ter sido a primeira pessoa que os visitaram.

Eles passaram a residir perto de minha casa. E como eram felizes juntos.

Viviam um pelo outro. Eram parceiros nas festas. Nas horas quando deles mais precisavam.

O marido, colega de fardas, era um profissional dedicado.

Incontáveis vezes nos encontrávamos nas salas de cirurgia. A esposa, amantíssima, permanecia todo o tempo dentro de casa. Poucas vezes a via na rua.

Passaram-se os anos. E o casal amigo dava provas de amor eterno. Nunca os vi em atitudes conflituosas. Como eles se davam bem. Eram um exemplo perfeito de felicidade conjugal.

A esposa, sempre alegre, um dia caiu enferma. O marido, dedicado cônjuge, cuidou da sua parceira nas horas piores por que ela passou. Enfim a saúde de novo voltou a sorrir para aquela senhora sempre sorridente.

Tiveram dois lindos filhos. Um netinho veio depois.

De vez em quando os via numa mesa de bar. E eles, amantes amigos, apreciavam uma cerveja nos finais de semana. Viviam às mil maravilhas. Cúmplices, parceiros, nos bons e maus momentos.

Acontece, como nem tudo é perfeito, num final de semana, do qual não me esqueço, fui informado da morte súbita do meu amigo. Ele caiu de repente, já sem vida, inerme, nos braços de sua esposa.

Ao seu funeral compareceram incontáveis admiradores. Fui um deles.

De vez em quando, ao passar pela casa onde moravam, via a esposa cuidando do jardim. Ela passou a morar solitária. Naquela casa pertinho da minha.

A solidão passou a ser sua única companhia. Os filhos moravam distante dali.

Tempos se passaram. E aquela senhora, esposa dedicava, que vivia pelo marido, passou a viver só.

Até mesmo os vizinhos mais próximos se afastaram. Não por não desejaram emprestar um ombro amigo aquela mulher admirável. E sim por desejo manifesto desde a morte do marido. Ela dizia, textualmente: “quero ficar sozinha”.

Um ano depois, exatamente doze meses da morte do marido, aquela senhora valente, guerreira, sempre altiva, foi encontrada morta na mesma cama onde passaram tantos anos juntos.

Não houve como deixar de atestar, como causa mortis, outra patologia. Ela morreu num ataque de solidão. Em seus olhos tristes podia-se constatar a evidência desta doença, que hoje em dia torna-se cada vez mais prevalente. Mesmo vivendo num amontoado de gente. Não temos como evitar a solidão.

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