Triste sina do Tião Desassossego

O sonho daquele caboclo simplório, mãos caludas, tez tostada pelo sol, era se aposentar um dia na vida.

O trabalho pesado sempre fez parte da sua faina diária.

Sem ter estudado, faltou-lhe infância, Tiãozinho sempre teve de ajudar ao pai na lida da roça.

Aos menos de cinco anos já se podia ver o menino assentado naquele banquinho tosco, apertando as tetas das vacas, ou apartando os bezerrinhos, enquanto o pai, que logo caiu enfermo, cuidava dos serviços pesados, naquela faina constante que todos conhecem, principalmente quem nasceu na roça.

Aos sete Tiãozinho foi matriculado numa escolinha rural. Ali passou pouco tempo. O pai, homem bom, aos cinquenta anos caiu enfermo. Uma doença degenerativa em pouco tempo nele montou. E em menos de dois anos Seu Antenor se viu curvado sobre si mesmo, sem forças nem para sair da cama.

Restou ao garoto Tiãozinho cuidar da pequena propriedade. Aos dez anos fazia de tudo. Alimentava a vacada, tirava leite de uma vintena delas, cuidava das crias com todo esmero, e, ao final do dia, já extenuado, dormia antes das seis. Para no dia seguinte começar tudo de novo.

Quem passasse os olhos no jovem Sebastião, aos menos de vinte anos lhe daria muito mais.

Acontece que a vida na roça, sob o sol escaldante do meio dia, acaba por tintar a pele de um moreno escuro, provocando rugas precocemente, conferindo um ar envelhecido, antes que os anos digam amém.

Assim vivia o jovem Sebastião. A falta do pai, a mãe desde longos anos se bandeou pra cidade, em busca de melhores oportunidades, como não tinha irmãos, nem mesmo aparentados, Tião vivia solitário naquela rocinha esquecida por todos. De vez em quando aparecia um vizinho. Era uma visitinha rápida. Pois todos naquele lugar ermo tinham como modos de vida a labuta constante.

Tião envelheceu prematuramente. Aos menos de quarenta anos já parecia ter o dobro da sua idade.

Como trabalhava desde os cinco anos, passou a contribuir para a previdência aos dezoito, aos cinquenta anos pensava ter tempo para se aposentar. Fazia as contas todas as manhãs. Inclusive, numa curta visita a cidade, passou por uma agência do INSS na intenção de fazer uma contagem de tempo.

Ali amargou uma fila enorme. Foram mais de três horas esperando que chamassem a sua senha. As vacas deveriam estar famintas naquela hora tardia. Ao olhar no relógio constatou ser mais de quatro da tarde. Era tempo de ordenhar as vacas. De apartar os bezerros, de tratar da porcada faminta.

Quando chegou a sua vez de ser atendido, a funcionária, com certeza de péssimo humor, sem ao menos olhar na sua cara, anunciou-lhe que ainda faltavam mais de vinte longos anos para gozar o beneficio da tão sonhada aposentadoria.

Tião deixou aquela sala mais infeliz do que entrou. Não pela demora no atendimento. Nem ao menos pela má vontade da funcionária. E sim pelo tempo que ainda tinha de trabalhar. Seu sonho de se aposentar foi adiado sine die.

Ao sair à rua, naquela hora do rush, sem olhar por onde ia, acabou sendo atropelado por um ônibus lotado. Teve fraturas múltiplas. Foi internado pelo SUS num hospital sem o menor recurso para tratar as suas injúrias. Dali saiu defeituoso. Manquitola, desequilibrado.

Foi um longo calvário que Sebastião teve de enfrentar. Teve de vender a fazendinha. Por um preço irrisório. Passou adiante as vacas. Quem as comprou deu um cheque que não foi compensado. Por falta de fundos.

Tião passou a morar na cidade. Alugou um pequeno quarto.

Quem sabe, dali em diante, tivesse a chance de afinal se aposentar de vez. A idade não era um requisito a favor da aposentadoria, conforme um dia lhe disse aquela mulher da agência onde passou horas a fio.

Tão contava com sessenta anos exatos quando deixou o hospital. A mercê de fraturas múltiplas, ainda sem poder andar, foi encaminhado a fazer uma perícia, levando um calhamaço enorme de exames, além do atestado comprovando a sua incapacidade laboral.

Mais uma vez o médico que o atendeu estava com a avó atrás do toco. Mal examinou o infeliz Sebastião. E atestou-lhe que ainda não era hora de se aposentar de vez. Deveria esperar mais alguns meses. As regras mudaram desde então. A reforma da previdência pegou o pobre Sebastião com as calças na mão.

Naquele mês de abril, quando Tião fazia aniversário, completaria setenta anos no dia cinco, quando voltou à agência do INSS, numa cadeira de rodas, certo que enfim havia chegado a sua hora, mais uma vez foi-lhe negada a aposentadoria. Faltavam alguns documentos: a sua carteira de identidade deveria ser atualizada. Os carnês estavam da mesma forma faltando alguns. A conta de luz, vencida, não servia para comprovar-lhe a residência. Celular Tião nunca teve. E o atestado de doença incapacitante estava desatualizado.

Tião, mais uma vez, deixou aquela agência pensando na vida.

No dia seguinte acordou sem ter dormido. Sonhou, pena que foi apenas um sonho, que voltou a sua rocinha querida, já aposentado, com um sorriso largo a enfeitar-lhe o semblante.

Na manhã seguinte, naquele quartinho minúsculo, num bairro de periferia, encontraram o velho Sebastião de olhos fechados. Ele morrera durante a noite. Sem realizar seu velho sonho da tão sonhada aposentadoria.

O velho Tião aposentou-se da vida aos quase setenta anos. Sem ao menos conhecer doce sabor da aposentadoria de verdade.

 

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