Quem sabe um dia…

Acordei sabendo que dia é hoje. Oito de abril, semana que antecede a semana santa.

Antes, quando ainda menino, não via a hora de despertar. Não via a hora de pular da cama. Acordava espreguiçando, bocejando, esfregando os olhinhos tintos de sono.

Era hora de ir ao colégio. Antes das sete, merendeira às costas, não via a hora de começar a estudar. Foi naquele mesmo colégio, cujas cores vestiam verde e branco, o mesmo que meu primeiro neto ensaia as primeiras letras que eu, seu avô, ainda garoto, menino ainda, começou sua trajetória rumo onde estou agora, já idoso, ainda operoso, embora a aposentaria já enseja o fim dos tempos.

Fazem exatos sessenta e mais anos quando tudo isso aconteceu. Parece uma eternidade.

E como eram bons aqueles verdes anos. Eu não tinha ainda nem noção do que me esperava adiante. Descompromissado com o futuro, só vivia o presente, quase não tinha passado, o que me esperava pela frente nem ao menos era percebido pela minha cabecinha avoada.

Saía da escola ávido por chegar a casa. Contava com apenas seis anos naqueles tempos de rica saudade. Tinha toda a tarde para fazer o dever de casa, e, depois daquela obrigação que absolutamente não me desagradava lá ia eu, em companhia de amigos, em busca de folguedos que hoje não fazem parte das crianças de hoje.

Jogava finca, andava de patinete de rodinhas de rolimã, bolinhas de gude num piso de terra batida, e, raras vezes ficava de castigo, por não atender aos pedidos dos meus pais.

Pena que um dia cresci. A criança que morava em mim acabou de despedindo pouco a pouco. Ela cedeu lugar a um jovem estudioso. Que acabou se mudando desta cidade. Para uma cidade maior. Na intenção pura e simples de se tornar o que sou hoje.

Bem que gostaria que o tempo não passasse tão veloz. Que eu continuasse a saborear a infância indefinidamente. Mas tudo caminha contra a nossa vontade. De crianças pequenas nos tornamos adultos responsáveis, para a seguir, uma vez idosos, compenetrados anciãos, cairmos enfermos, e, um dia, não imagino quando, despedirmo-nos da vida sem poder dizer não.

Quem sabe um dia, num futuro incerto, a vida não fosse tão passageira. E a gente, ainda plenos de saúde, tivéssemos a capacidade de prolongar o futuro indefinidamente. Cuidar dos netos, vê-los crescerem, acompanhar-lhes o desenvolvimento, brincar com eles, como costumávamos fazer quando ainda éramos meninos, sem sequer imaginar o que iríamos nos tornar no decorrer dos anos.

Tomara um dia, que este dia não tarde tanto, a vida se prolongaria por mais anos, até que esgotássemos as possiblidades de vivermos eternamente.

Que bom seria se tudo nesta vida mudasse. As doenças cessassem. E, quando tivermos de passar ao outro mundo tudo acontecesse sem sofrimento, sem lágrimas derramadas, sem despedidas prolongadas, desapegando-nos da vida sem o menor constrangimento.

Quem sabe um dia, quando chegarmos ao tempo de não mais alimentarmos ressentimentos, todos fossemos iguais, a fronteira entre ricos e pobres fosse reduzida a nada, eu ainda estivesse vivo. Que bom seria.

Quem saberia dizer, que seja perto, todas as ofensas fossem banidas deste mundo, todas as inimizades fossem transformadas em abraços sinceros, todos os desafetos se transformassem em amigos de verdade.

Quem sabe um dia, que ainda esteja vivo para comprovar, que o sol nascesse para todos, não se observasse tanta miséria por este mundo afora, tantas crianças ao desabrigo, fora da escola, passando fome, entregues a violência das ruas, sendo abusadas por simplesmente por serem crianças, ingênuas em suas tenras infâncias.

Tomara possa observar nalgum dia, o nosso país em verdade encontrar seu prumo. E não continuar a deriva como a mídia mostra, em seu noticiário costumeiro, todas as manhãs.

Quem sabe um dia, que este dia não tarde tanto, todos nós tivermos iguais oportunidades de um bom emprego, um salário digno, e um descanso merecido.

Cresci pensando no que seria nos tempos de agora. Não que tenha crescido tanto.

No entanto, nos tempos de hoje, prestes a completar setenta anos, ainda sonho.

Imagino, quem sabe um dia, nossos netos, filhos, consigam viver num país melhor. Bem melhor do que se mostra agora.

Oxalá ainda viva o bastante para constatar que meus sonhos não foram apenas sonhos.

E, quando acordar, comprove que tudo está melhor. De fato, e de direito, merecemos um país que receba os nossos descendentes com iguais oportunidades de se tornarem gente. Que tenha motivos de sorrir. E de se orgulharem de onde nasceram. E possam propalar a todo mundo que aqui ainda se pode sonhar.

Quem sabe um dia… Que este dia chegue de repente, enquanto ainda possa pensar.

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