Nostalgia do amanhecer

De tempos pra cá tenho relutado em sair da cama.

O sono continua curto. A noite me amedronta.

Na minha idade, perto dos setenta anos, aproveito o máximo o desenrolar dos dias.

Considero passar oito horas envolto com o sono um desperdício. Pois não sei quantos dias me esperam de hoje em diante.

Já vivi um bom bocado. E espero viver mais anos ainda. Tenho três netos a cuidar. E como me apraz passar horas aos seus lados, brincando com eles, fazendo de conta que ainda sou menino.

Talvez possa ver os três encaminhados na vida. Como hoje estão meus dois filhos.

Netos são filhos açucarados. Compete a nós, avós, estragá-los um pouco. Fazer-lhes as vontades, presenteá-los quando eles se fazem merecedores, dar-lhes conselhos, apesar de por vezes não sermos compreendidos.

Tomara todos eles, meninos, quando estiverem maiores não se esqueçam deste velhinho babão, já abengalado, que mal escuta os seus reclames. E faz de conta que não precisa de nada. Mas nada como ouvir de suas boquinhas aquele saboroso “a sua benção vovô”. E eu respondo, com um muxoxo – “vão com Deus”.

De tempos recentes acordo cada vez mais cedo. Antes que o sol desperte, neste outono da minha velhice, quando o relógio mostra menos de quatro da manhã meus olhos se abrem. O quarto ainda está escuro. A companheira que dorme ao meu lado ainda está dormindo. Ligo a televisão. Assisto as más notícias do dia anterior. As boas são mais e mais exceções.

Reluto em deixar a cama. Como é gostoso ficar entre aqueles lençóis macios. Deixando este velho corpo entregue ao ócio da madrugada. Nem sequer imagino o que me espera no decorrer do dia.

A seguir vou ao chuveiro. Tomo uma ducha morna. Quiçá ela me faça despertar de vez.

Visto aquele roupa dependurada no cabide. A mesma que usei no dia anterior. Antes morava longe do meu consultório. Caminhava por cerca de meia hora até chegar aqui. Agora, como moro pertinho de onde estou, bastam alguns segundos para pensar no que vou escrever.

A inspiração por vezes tarda em aparecer. Basta um esforço pequeno e logo ela vem.

A noite escura. As ruas vazias. Aquele pedreiro que recém chegou a construção. A estudante que, de mochila às costas, se prepara para ir a escola, preocupada com o porvir. Todos eles são motivos para que a inspiração venha. Devagarzinho, titubeante, como este quase velhinho que um dia vai se amuletar de vez.

É comum os idosos sentirem uma certa nostalgia depois de viverem tanto. Faz parte de nosso ser. Ela deve ser de pequena intensidade. Não grande demais para que a gente não se sinta a vontade entre os seres viventes.

De tempos pra cá, mesmo acordando mais cedo ainda, reluto em deixar o leito. Talvez seja devido a idade que mais e mais monta em mim. Antes, mais jovem, com tanto trabalho pela frente, operando feericamente nos três hospitais, acordava bem disposto. Vestia aquelas vestes brancas. Tirava o carro da garagem. E em poucos minutos estava pronto a operar casos novos. Para a seguir atender no consultório. Naquelas idas e vindas que faziam parte da minha vida de médico em início de carreira.

Já hoje, depois de tantos e tantos anos, ainda não aposentado, de vez, ao deixar o leito sinto uma leve nostalgia ao identificar o amanhecer.

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