Celebrem-me em vida

Várias vezes deixei escrito: “de que vale ser valorizado depois da morte. Se não vais ouvir as exaltações elogiosas ao seu favor uma vez partido rumo ao infinito.”

Deveras. Antes era um bom senhor. Nada a desaboná-lo. Sua folha corrida era mais limpinha que bunda de nenê cheirando a talco. Suas virtudes. Sobejamente decantadas, tanto em prosa diversificada. Nada ficava a dever na conta do bar. Era a melhor pessoa da mundo até que se provasse o contrário.

Nada atestava suas falcatruas. Era um poço profundo. Nada imundo. Cheio pelas bordas de feitos gloriosos.

Mas, assim que exalou seu último suspiro. Já no velório. As pessoas, ao derredor de seu ataúde branquinho, diziam em coro desafinado: “que pessoa boa era o Seu João. Ele nunquinha deixou uma viúva descontente. Satisfazia todas as vontades de suas mulheres em vida. Nunca reclamou de um Ricardão. Permitia gatos e ratos se enfiarem no leito pecaminoso de suas esposas. Que a ele prometiam ser fiéis até o dia de sua morte. O que infelizemte aconteceu naquele infausto dia.”

Tenho comigo que feitos elogiosos devem ser ditos ao lume dos dias. Não em prosas ruins num banco de jardim. Se quiserem falar de mim o façam me olhando nos olhos. Nunca pelas costas que não enxergam.

Quando eu morrer já disse ter elegido o dia. Vai ser numa noite escura como breu. Irei fechar definitivamente os olhos em plena e perfeita saúde. Se vou deixar saudades nem sequer saberei. Aquela infausta e triste efeméride vai ser num trinta de um de feverereiro. Num ano ainda desconhecido. No me velório não quero choramingas nem coroa de flores. Desejo sim que aplaudam-me de pé. Já que estarei deitado. E não falem em voz alta que pra mim tanto faz. Não escutarei as fake news que dirão sobre mim.

Uma vez mortinho da Silva, embora meu sobrenome não seja esse e sim Rodarte de Abreu. Não quero que ergam ermas ou bustos numa praça qualquer. Esse monumento por certo vai ser latrina de pombos ou escora de bêbados egressos de bailes de carnaval. Vomitando seus dejetos aos meus pés de cimento armado.

Desejo que dentro do meu ataúde preto como asa de urubu coloquem livros de minha autoria. Não sei se irão caber todos eles. Se houver lugar naquele espaço exíguo depositem flores do campo. Não permitam que chorem a minha ausência. E não façam continência, pois não fui soldado muito menos general. Apenas não me deixem de olhos abertos. Eles não vêem mais. E não podem comprovar quem está presente. Se amigos de verdade ou falsos como nota de trinta reais.

Já disse e deixei escrito dantes. Se alguém duvidar de minha lisura e competência que diga, ou melhor, escreva antes de minha despedida. Após a minha partida não sei a opinião abalizada que fazem do meu eu. Se fui bom ou ruim não sei se fui. Nem serei pior depois da morte.

Se não fui melhor bem que tentei. Se não agradei a todo mundo pelo menos pude agradar a mim mesmo. Se não ajudei pessoas foram elas que não pediram a minha ajuda. Não pensem que as ignorei.

Celebrem meus feitos em vida. Digam e aplaudam minhas atitudes enquanto estiver por aqui.

Não falem inverdades sobre mim, pois não as escutarei. Se por acaso disserem coisas boas ao meu respeito respeitem meu silêncio após minha morte. Serei todo ouvidos quando ainda puder ouvir.

Cultuem-me antes que morra. Se quiserem dizer que eu fui um cidadão prestante o façam agora. Depois de morto o conceito que fazem de mim vai ser exprimido ao vento. Que não assopra nesse momento. Mas vai levar-me em seus braços esvoaçantes naquele momento único quando não mais estiver por aqui.

Celebrem-me em vida.  Uma vez na minha partida de nada adianta dizer-me adeus.

 

 

 

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