Parece que vi um anjo

Hoje o céu amanheceu encoberto por uma camada fina de nuvens. Uma chuvinha leve deixa seus pingos na janela. Uma nesguinha de sol ameaça vencer as nuvens. Talvez mais tarde ele consiga.

Como tem chovido neste mês de março. Tomara em abril as chuvas serenem um bocado.

Ora chove, ao cair da tarde, durante as noites, ora o sol esquenta com seu brilho intenso. As águas de março creio são as últimas da estação. Lá na roça as goiabeiras estão cheias de frutos maduros. Um tanto bichados, cheinhos de pontinhos pretos, sinal de que eles logo apodrecem e caem ao chão.

Hoje, cedo, a hora costumeira olhei pro céu na intenção de voltar a ser menino. Naqueles tempos idos acreditava em anjos. Segundo minha imaginação fértil cria naquelas criaturinhas aladas, de asinhas brancas, sobre a cabeça uma coroa de flores amarelas, que ajudavam ao Papai do Céu na guarda de um lugar especial. O céu pra mim era o lugar pra onde iríamos caso fossemos pessoas boas. Caso contrário nossas almas vagariam sem rumo. E mais tarde desceriam a um lugar escuro, quente, onde capetinhas de espetos em punho atazanavam as nossas existências até o infinito.

Depois aquele menino cresceu. Envelheci. Deixei a infância escorrer pelo ralo da vida. Uma vez adulto acabei descrendo de anjos. Mas ainda acredito num ser superior, que não se deixa ver, mas tem sua existência comprovada por onde quer que se vá. Seja nas árvores copadas. Nas flores que um dia murcham. Nas mães amamentando os filhotes. Na natureza que sorri a mercê da chuva que cai.

Olhando pra cima, nesta fase da minha vida, não mais imagino anjinhos avoando no azul do céu. Agora só vejo nuvens cinzentas. O amarelo do sol que esquenta. A chuva que de vez em quando cai. Não que tenha perdido a fé naqueles seres alados. Da mesma forma não mais acredito em Papai Noel. Mas não perdi a fé na boa índole dos seres humanos. Todos temos nosso lado bom. Que por vezes se esconde na violência do dia após dia.

De tempos pra cá me mudei para um apartamento pertinho de onde escrevo. Onde tenho meu consultório de urologista. Acabei me acostumando a não caminhar tanto. Quando ainda morava naquele condomínio um cadinho distante de onde estou.

Confesso que ainda sinto saudades da velha seringueira. A mesma que se mostrava orgulhosa, mesmo sendo uma árvore desterrada do seu nicho. Sinto saudades daquelas arvorezinhas que se vestem de florzinhas brancas no fim do ano. As murtas sempre me inspiraram.

Mas, a grande vantagem de morar aqui pertinho é o fato de estar perto de dois anjinhos. Eles respondem pelos nomes de Theo e Dom. São crianças novinhas, que por vezes choram. Fazem birra quando não querem ir à escola. E mostram a carinha emburrada quando mudo o canal onde assistem aqueles desenhos animados. E ficam defronte a televisão como que hipnotizados.

Há cerca de dois dias tenho cumprido a risca meu papel de avô. Levo o mais velho, o Theo, o que se parece a mim, a escola onde eu mesmo passei a infância. Ontem o mesmo quase deu meia volta. Foi custoso convencê-lo que ali era o melhor caminho para chegar à fase adulta sem vícios maiores.

Já o menorzinho, um bebezinho ainda, passa quase o dia inteiro sonhando com os anjos. De vez em quando acorda. Esboça um sorriso, abre os olhinhos escuros, mama com sofreguidão, e volta a dormir.

Já o safadinho do Theo já sabe o que quer. E, caso o contrarie faz manha. Adora andar de carro. Não se satisfaz em ser amarrado à cadeirinha. Já manifesta a vontade de dirigir. Como seu avô não permito tais regalias. Faço-me de duro. Com meu coração amanteigado confesso que logo retrocedo nos castigos.

Já hoje, nesta manhã de outono, temperatura amena, céu ainda encoberto pelas nuvens, sexta-feira, vinte e dois de março, novamente sonhei com os anjos. Já descria das suas existências. Eles não mais fazem parte de minhas crenças.

No entanto, antes de deixar o apartamento, onde agora moro, subi um lance de escadas. Era onde dormiam meus dois netinhos.

Tanto o Theo quanto o Dom dormiam em seus quartinhos. Passei devagarinho perto deles. Temoroso de que eles acordassem. Permaneci por ali alguns instantes. A olhar aqueles dois menininhos dormindo de olhinhos fechados.

Dentro daqueles olhinhos inocentes percebi, ou seria imaginação, duas figuras aladas, de asinhas brancas, sobre suas cabecinhas uma coroa de flores brancas.

Foi então, naquele exato momento, voltei a acreditar em anjos. Eles se mostram nas crianças dormindo. Correndo, brincando, sorrindo.

E como foi bom reencontrar os anjos, depois de tantos anos, no sono angelical dos meus dois netinhos.

Não parece que vi um anjo. Em verdade vi dois deles. Certo de não ter sido mais um devaneio meu.

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