O que vai ser de mim…

Hoje, dezenove de março, dia nublado, mal se vê a linha do horizonte, tudo está esfumaçado, acordei como de costume a mesma hora de sempre.

O relógio do meu celular mostrava antes das seis. Não abri a janela para não incomodar minha esposa. Ela ainda dormia. A sono leve.

Fui ao banheiro anexo ao nosso quarto de dormir. Tomei uma ducha morna. Novo dia estava apenas começando. Lá fora mal se via o entorno. Tomara mais tarde o sol brilhe de novo. Dias nublados entorpecem-me a alma. Amo o nascer do sol. Nada contra a chuva. Que tem caído sem cessar. Mas que ela caia durante a noite. Durante o passar do dia prefiro andar vendo o sol brilhar.

Agora já estou no consultório. A espera que o primeiro paciente apareça. O telefone de vez em quando toca. Atendo, cordialmente, e digo que o médico ainda não chegou. Que retorne a ligação a partir da oito. Aqui no prédio quase todas as salas ainda estão vazias. O silêncio predomina. A tranquilidade impera.

Estamos em meados de março. E eu já passei, creio eu, bem mais da metade da vida. Quantos anos mais me restam? Meu pai viveu sete anos mais. Minha saudosa mãe se despediu de nós depois dos oitenta.

Isso de ficar pensando no fim, quando vamos morrer, absolutamente não tem feito parte dos meus planos. Prefiro fazer planos de viver muito mais. Principalmente se a saúde não me abandonar. Para que ela ainda faça parte dos meus planos faço por onde. Caminho, corro quando a ocasião permite, frequento a academia ao fim das tardes, nado com a desenvoltura de um pato sem asas. Tudo tenho feito para viver feliz. Embora saiba que a felicidade é passageira. Fugaz como o vento que passa.

Agora tenho três netos. Todos eles são do sexo masculino. Quem sabe ainda viverei mais anos para que uma menininha acompanhe os passos trôpegos do avô?

Assim espero.

Hoje acordei a hora de sempre. Repeti a rotina que tem me assaltado todos os dias. Tomara não sucumba à rotina. Ela é enfadonha.

De tempos pra cá mudei de endereço. Agora vivo aqui pertinho. Junto aos meus dois netinhos. No andar de baixo. O terceiro de vez em quando aparece. Como me sinto bem na presença dos três.

Foi quando pensei, na manhã de hoje, o que vai ser de mim quando não mais puder caminhar. For impedido de pensar. Não mais puder levantar da cama. Meus dedos não mais puderem digitar. O que vai ser de mim?

Neste mês de março, quando beiro os setenta anos, ainda sou capaz de fazer tudo como era antes. Escrevo, exerço a medicina, penso, lucubro o que vai ser de mim.

E quando não mais puder caminhar, tendo de ser cuidado por alguém, as enfermidades tomarem conta de mim, olhar sem conseguir admirar a beleza do céu azul, com aqueles olhares inexpressivos, vazios, em busca do nada. O que vai ser de mim?

Por vezes penso, nesta fase da vida, quando ainda sou capaz de me enternecer com o sorriso de uma criança, com a sensibilidade que me machuca a alma, até quando serei capaz de abraçar a um amigo, tantos se foram, que nem consigo imaginar qual será o meu dia.

O que vai ser de mim, indago, se puderem me responder eu peço, até quando poderei comemorar o nascimento de mais um neto, que seja uma menina linda como foi minha mãe, quando ela ainda era bebezinho lindo?

O que será deste velho alquebrado, ainda não me sinto assim, quando a felicidade por estar vivo não mais fizer parte dos meus planos? Quando estiver atado a um leito de hospital. Sem pode exigir que me deixem partir?

O que vai ser de mim quando não mais puder enxergar por meus próprios olhos o que se passa no entorno. Minha visão estiver embaciada. Turva, morta. E não mais puder atestar neste computador o que se passa dentro de mim. Nesta manhã nevoenta. Privada da luz do sol.

Mais uma vez pergunto, nesta manhã de hoje, quando ainda posso escrever, pensar, sofrer, me alegrar, viver, e não mais ser capaz de viver a vida como ela merece. Plena, rica, soberba.

O que vai ser da minha pessoa quando não mais puder me condoer da dor de outrem. Ficar insensível, inerme, apático, apatetado, com olhos mortiços, numa cadeira de rodas qualquer?

O que será de mim quando não mais puder olhar a natureza com olhos de deslumbramento? E como ela ainda é bela. Basta olhar o entorno.

Quantos o que vai ser de mim ainda gostaria de deixar escrito. São tantos quantos minha mente enseja.

Daí a minha esperança, que um dia, quando eu não mais estiver aqui, que alguém leia alguns dos meus textos. Eles bem atestam o que será de mim. De hoje em diante, por muitos anos mais. É o que espero, de coração aberto, enfim…

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