Tião Semana Santa

Nem bem o mês de março sumia do calendário e o velho homem da roça se benzia.

Como era religioso o velho Tião.

Acordava já com um terço na mão. Não perdia uma procissão. A missa era seu programa de todos os dias.

Andava léguas a pé, só para ir à igreja. Num arraialzinhno distante de sua rocinha mais ou menos dez quilômetros. Mas não perdia uma só celebração. Era tido beato. Orava com devoção.

Desde criança acompanhava aos pais, fervorosos devotos de uma santinha dita milagreira naquelas paragens, que tinha a fama de ter curado um sujeito depois de uma mordedura de cobra peçonhenta, quase morreu não fosse pela interseção daquela santinha boa, cujo nome passou a ser Santinha da Cobra da Encruzilhada.

Tião tinha verdadeira adoração pela família. Era tido um homem sem defeitos. Quando morresse o velho Sebastião gostaria que fizesse parte do seu epitáfio a seguinte inscrição: “aqui jaz um homem cuja causa morte foi bondade pura”.   De fato ele tinha um enorme coração.

Aos quase setenta anos, completos naquele dia, dezoito de marco, não teve festa. Ao acontecimento compareceram alguns vizinhos. Um trouxe um galinha em final de linha. O segundo presenteou ao velho Tião com uma linda bezerrinha, que acabou morrendo logo depois. Dizem que ela tinha um defeito congênito. Faltava-lhe o focinho.

Mesmo assim Tião recebeu os amigos com um belo sorriso na boca desdentada. Era aquele sorriso mil e um. Exibindo sua banguelice na parte de cima. Onde perfilavam valentes apenas dois dentes. Eram os que restavam.

A semana santa se aproximava. Tião estava feliz como nunca esteve. Não via a hora de acompanhar a procissão, pelas ruas descalçadas daquele arraialzinho, onde moravam apenas alguns gatos pingados. Fora ele mais ou menos duas dúzias de pessoas.

Nem padre na localidade existia.

Mesmo assim, na véspera da quarta-feira, depois de terminar as tarefas rotineiras, o velho Tião vestiu a melhor fatiota que dispunha. Tirou do baú um terno herdado do avô. Nos pés uma botina gomeira. Uma camisa branca fazia fundos à vestimenta. Poder-se-ia dizer que não ficou uma belezura. Mas, olhando-se no espelho até que o velho Tião poderia passar por um sujeito em vias de se casar. Embora lhe faltasse o essencial – a esposa.

Tião acordou com um estranho pressentimento naquele primeiro dia da semana santa.

Sonhou que iria chover a cantar de pingos gordos. Inclusive uma enchente estava programada em seu sonho. Levantou-se assustado. E lá fora uma cerração baixa cobria tudo ao derredor.

De fato a noite anterior choveu um bom bocado. Tudo estava molhado. A terra barrenta, poças d’água indicavam que havia chovido demais da conta. A relva molhada, o esterco empapado, eram indícios seguros de que chovera realmente.

Tião acordou sem ter dormido direito.

Depois da ordenha se dirigiu ao povoado. Foi andando, lentamente. Era mais ou menos sete horas. Se tanto.

Ao lá chegar o céu estava escuro. Nuvens negras anunciavam mais chuva por cair.

A procissão estava por começar. Contando nos dedos mais de uma dezena de pessoas se preparavam para acompanhar o padre, vindo de outra localidade, na sua caminhada rumo à capelinha do lugarejo.

De repente caiu uma aguaceira que acabou pondo em debandada todo mundo. Só ficou o velho Tião a carregar a cruz. Até mesmo o padre escafedeu-se esbaforido.

Uma hora durou a tempestade. Depois o sol voltou a brilhar.

Assim que as pessoas voltaram depois da chuva, nada de encontrar o velho Tião. Procuraram a semana inteira. Dias depois de terminada a Semana Santa, sem notícias do desaparecido, afinal, sem esperanças do reencontro, deram com uma pessoa afundada na lama. Era o que restou do velho Tião. Ele foi encontrado mortinho da silva. Ainda trazendo às costas uma cruz de madeira. Naquele domingo de ramos foi rezada uma missa em intenção do velho Tião. Que até hoje é lembrado como Tião Semana Santa.

Até hoje ele é lembrado como santo. A espera da canonização.

Deixe uma resposta