Desafortunado Tião Sem Sorte

Como trabalhou durante toda a vida aquele homem nascido onde se encontra o vazio com o nada.

Era uma rocinha perdida num pé de serra, longe de tudo e de todos, escondida até daqueles que se sentem perdidos por uma estrada qualquer.

Tião lidava na roça.

Acordava ao nascer do sol. Ainda madrugada quando Tião, ainda menino, abria os olhinhos sonolentos, levantava de um pulo só, e ajudava ao pai, já no curral, a lidar com as vacas, apartava os bezerrinhos, dava de mamar aos bichinhos, e, antes que o relógio marcasse sete da manhã Tiãozinho tinha de ir à escola, cujas aulas começavam antes das oito.

Era um aluno entre os piores o menos ruim. Aplicado em ciências exatas. Não tinha pelo português em alto apreço. Mas passava de ano com a ajuda da professora. Uma linda morena pela qual tinha o maior chamego.

Tiãozinho cresceu entre as vacas e suas crias. Por elas tinha verdadeira adoração.

Aprendeu, com o avô, qual seria a época ideal para semear as sementinhas de milho. Quando a égua dá cio. Quando a vaca se deixa montar. Só de olhar as nuvens previa quando a chuva iria cair. A lua ideal para arar a terra desnuda era do seu conhecimento. Qual seria o tempo certo para ensilar a roça de milho antes que o milharal ficasse duro demais.

Tiãozinho se viu realizado assim que completou vinte anos. Já era considerado por todos os vizinhos o verdadeiro sucessor do pai. Que de repente se viu enfermo. Foi jogado ao leito antes dos cinquenta anos. De onde não se levantou mais.

Antes dos trinta Sebastião, sentindo-se afortunado, se casou com uma linda mulher. Era a esposa ideal. Considerada como prendada. Sabia fazer de tudo um pouco. Lavava, passava, cozinhava como poucas. E na cama não negava fazer amor. Era fogosa como égua no cio.

Mas nem tudo que é bom dura para sempre.

Um feio dia, do qual Tião se lembra sem saudades, a tal esposa, cujo nome era Margarida, resolveu deixar o Tião fugindo, pela porta dos fundos, com o motorista do caminhão leiteiro.

Desde então nunca mais a viu. Ainda bem que não tiveram filhos.

E a vida marchava naquele trote lento. Tião, vivendo na sua própria companhia, já que o pai o deixou faz tempo, desdobrava-se entre as tarefas da roça e a solidão que se fazia presente.

Mas não se importava, antes dos quarenta, em viver sozinho. O que tinha de melhor era a saúde. Não se lembrava da última vez que precisou visitar um médico.

No entanto, assim que mudou de década, dos quarenta pulou ao cinquenta, as coisas começaram a mudar na rotina enfadonha do infeliz Tião.

A próstata começou a incomodar. Durante a noite, quase toda passada em brancas nuvens, acordava de meia em meia hora para verter urina. Até chegar a um ponto, numa madrugada sofrida, que viu a bexiga encher e não conseguir esvaziar.

Foi uma correria desenfreada até conseguir ajuda. Foi parar no hospital da cidade próxima graças a um compadre que para lá ia, numa velha carroça, puxada por uma mula manca.

Durante o trajeto, felizmente curto, Tião viu a vó pela greta. Suava, gemia, e nada de sair urina.

Infelizmente não havia médico naquela unidade de saúde desapetrechada de recursos. Uma enfermeira sonolenta foi quem o atendeu. Mas ela nunca havia visto um caso como aquele. Muito menos sabia, dentro de sua própria ignorância, como se soletrava a palavra próstata.

Nesse ínterim o pobre Tião, pálido, com a bexiga prestes a estourar, gaguejava, cuspia marimbondo, apertando os lábios lívidos, indicando, com a mão que precisava esvaziar a urina estancada na bexiga. Mas quem, naquele local desprovido de recurso, ninguém sabia usar uma sonda, introduzi-la na uretra, até chegar ao endereço certo.

Acontece que, naquele exato momento, apareceu, vindo do nada, um enfermeiro experiente, que, para felicidade do paciente conseguiu, num uivo de sorte, enfiar um talo de mamona na uretra do infeliz Tião. Foi quando ele se viu aliviado. Deixando todos sem saudades da sua visita inesperada.

A partir de então o velho Tião deveria ser operado da próstata. Mas como fazê-lo, às expensas do SUS?

Era uma fila que dava volta no tempo. E Tião, aos quase sessenta, ainda longe de se aposentar, tinha de amargar quase dois anos para ser contemplado com a graça da operação.

Feitos os exames pré-operatórios, tudo quase pronto, enfim chegou a hora da internação do desinfeliz Sebastião. Era afinal o momento tão esperado para se ver livre daquele caninho macio, feito de látex, enfiado na sua uretra. Contavam dois anos que o velho Tião aguardava aquela tão sonhada intervenção.

Acontece, quem já passou por isso bem sabe, que no instante exato quando a gente mais precisa, a salvação da lavoura não sai conforme a música.

E o médico  especialista, que deveria operar o Tião entra em férias. E mais uma vez a cirurgia é adiada. Sine die.

Passaram-se mais dois anos. Tião completaria, naquele mês de fevereiro, véspera de carnaval, setenta anos.

Justamente na antevéspera da operação, mais um contratempo apareceu na contramão da desilusão do infeliz Sebastião Sem Sorte.

Ele acabou enfartando. E o anestesista contra indicou a cirurgia, dado ao alto risco do procedimento.

Contam que Tião Sem Sorte foi sepultado na véspera de se aposentar. Ainda portando a sonda na uretra. Sem chance de ser operado.

Como este pululam casos em nosso país. Até quando? Nem eu sei…

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