Desgraça pouca é bobagem

Aquele não estava sendo um ano fácil para o desinfeliz Zé da Mula.

As chuvas não chegaram na hora certa. E quanto veio o fez com força total.

O céu de repente escureceu. Caiu uma aguaceira danada. A lama gosmenta impedia a estrada de receber a visita tão esperada do caminhão leiteiro. E quando ele teimava em descer a ladeira acabava atolado naquele barro grudento. E nem o trator dava conta de rebocá-lo ao alto do morro para que ele seguisse viagem.

Zé da Mula, apelido que nele fez pouso, e nunca mais desgrudou, foi-lhe presenteado desde quando foi visto aos beijos e abraços com uma mula arisca, com a qual acabou se casando, dizem as más línguas.

Zé nunca teve uma mulher com quem dividir o leito. Também pudera. Com aquela cabeleira rala, careca desde quando jovenzinho ainda, com aquela barriga de esconder o andar de baixo, com aquela voz fanha, ainda por cima gago, vivendo naquela rocinha desencantada, quem iria, em sã consciência, se casar com alguém desapetrechado de quase tudo, menos o desejo de trabalhar?

Aos quase trinta anos Zé da Mula pensou em se mudar pra cidade. Pois lá, no lugar onde nasceu, nada dava certo.

A renda do leite não era suficiente para pagar as despesas. As vacas exigiam muita dedicação.

O que fazer na cidade, já que não sabia fazer nada além do que estava acostumado?

Numa sexta-feira deixou tudo de lado. Fechou a porteira. Nem se despediu da mula preta. De carona no caminhão leiteiro partiu rumo à nova vida.

Quem sabe ali, naquele lugar desconhecido, a sorte mudasse?

Arrendou a rocinha amada a um vizinho de cerca. Vendou as vacas a um preço mais que convidativo. Recebeu pelo plantel um cheque que deveria ser descontado dali a dois meses inexatos. No tempo certo percebeu que ele não tinha fundos. E o danado do vizinho não pagava o aluguel. Acabou entregando o caso a um advogado. Que lhe cobrou os olhos da cara e nunca mais a deu.

Zé da Mula, mesmo sujeito a toda a sorte de contrariedades, não desanimou.

Foi em busca de emprego. Quando lhe perguntaram sobre o currículo, qual a sua aptidão, nem dava resposta. Pois não sabia o que seria aquilo nem aqueloutro.

Passaram-se dois meses. E nada de Zé da Mula conseguir emprego.

Num dia de sol, depois de uma noite escura e fria, Zé de novo acordou em plena madrugada. Dormia pouco. Mercê da situação aflitiva em que se encontrava não conseguia dormir. Passava as noites com os olhos esbugalhados. E quando o novo dia chegava o pobre Zé saía à rua sem ao menos tomar o café da manhã.

Quase um ano se passou. E o Zé continuava na mesma condição. Desempregado, batendo em portas fechadas, sendo enxotado como um cão sem dono.

Da pensão espelunca onde se hospedou foi expulso por falta de pagamento. As economias que trouxe da roça expiraram em cinco meses. Nada mais restava naquele bolso vazio senão algumas moedinhas sem valor.

Zé acabou debaixo de um viaduto. Sem eira nem beira, com uma mão na frente e a outra sem saber onde por.

Numa manhã chuviscosa Zé acordou molhado até a intimidade. Foi preso por vadiagem. E amargou xilindró por duas semanas inteiras. Ao sair, ainda pior de quando entrou, pensou em suicidar. Foi salvo, prestes a pular do mesmo viaduto, por uma alma caridosa que por ali passou.

Naqueles dias infelizes Zé da Mula vagava a esmo pelas ruas da cidade. Irreconhecível, com a barba por fazer, magricela, costelas a mostra, quem visse o que restou do infeliz Zé não lhe daria mais de alguns meses de vida.

Mas, por um golpe de sorte, numa lufada de vento norte, quis o destino que Zé novamente se mudasse pra a roça.

Quem sabe ali encontrasse vida nova, de repente? Quem sabe se o tal vizinho permitisse que o dono das terras de novo tomasse posse do que era seu?

Quando ali chegou, um arremedo do que fora, irreconhecível, parecendo uma alma penada, encontrou tudo mudado. Para pior, se é que seria possível.

A casa onde viveu parte de sua vida fora demolida. Dela só restaram escombros. O velho curral foi derrubado. Só restaram as telhas. As vacas pastejavam um capim amarelo palha. Quase todas em situação de abandono total. O velhaco do vizinho não mais vivia naquele lugar. Foi-se embora para nunca mais voltar.

Zé, desconsolado, arregaçou as mangas e começou tudo de novo. Quem sabe, com muito trabalho, poderia ver a sua roça novamente produzir frutos.

E foi o que fez.

Naquele dia conseguiu descansar ao fim da tarde. Acordou com um relincho que lhe lembrou da velha mula preta. Foi de encontro de onde partiu o chamado, bastante esperançoso de reencontrar a mula de tantas saudades.

Num matinho denso nada encontrou. Por cima do morro alto nem sinal dela. Passou noites de dias a procura da mula. Em poucos dias sentiu que tudo aquilo fora mera ilusão de saudades.

Zé acabou falecendo numa noite escura. Encontraram o que restou dele tempos depois.

Ao seu funeral, alguns vizinhos do lado acompanharam o sepultamento, alguém se lembrou de gravar na lápide a seguinte inscrição: “desgraça pouca é bobagem”.

Ainda hoje, quando vou à roça do Zé, faço uma visitinha ao seu túmulo. Passo alguns momentos em oração. Rezo por sua alma. E pelas outras de gente da roça. Pessoas valentes, guerreiras, que não têm o devido reconhecimento. E é graças a elas que na cidade vivemos. Alimentamo-nos. Somos felizes. Como eles merecem ser. E por vezes não conseguem.

 

 

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