Sou do tempo…

Quando se atinge certa idade, quando a velhice ameaça chegar, embora ainda não me sinta velho, aos quase setenta anos tenho pensado no tempo.

Afinal deixei a infância de lado há mais de sessenta anos. Impossível dizer quantos foram. A meninice peralta me abandonou desde quando me tornei jovem.  A fase adulta se foi, de repente.

Torna-se impossível prever quantos anos nos restam. Melhor viver o presente como um presente dos céus. Muitos dizem que o passado não volta jamais. Que se deve olvidá-lo.

Trancá-lo num baú de lembranças. Jogar a chave fora. Num lugar onde ninguém a encontre.

Mas eu, saudosista, imediatista, não me esqueço do passado. Ele está logo ali. Naquela rua que se vê pelos fundos. Local onde cresci.

Bem me recordo daquela rua antes que o asfalto nela tapasse os paralelepípedos. A rua que daqui se avista ainda era de terra batida. Poucos carros existiam. As casas eram habitadas por famílias velhas conhecidas. O velho hospital, o clube que ainda frequento, ao cair das tardes, moram no mesmo lugar. Já os vizinhos antigos já não mais estão por lá.

Agora só quase restam escombros das casas moradias. A maior parte delas se transformaram em clínicas. Logo logo a casa onde cresci não mais vai estar presente. Assim como eu partirei rumo a um lugar incerto.

Há dias atrás perdi um amigo caro. Ele se foi de repente. Tínhamos a mesma idade. Era um grande homem, íntegro, capaz, um colega do qual me orgulhava.

Pensando no tempo presente, tão modificado, tão díspare de antigamente, sofismo como as coisas mudaram.

Sou daquele tempo quando as brincadeiras eram outras. Não existiam os celulares. Nem ao menos os joguinhos eletrônicos.

Sou daquele tempo que o respeito aos idosos era não apenas ensinado nas escolas assim como praticado no dia após dias. Uma vez no transporte público, quando víamos algum idoso entrando na lotação, era comum cedermos o nosso lugar a eles. Sem que alguém nos indicasse, com olhares de admoestação, que seria o certo.

Sou do tempo que se usava dizer bom dia, boa tarde, sem nos preocuparmos com a resposta que via de regra partia do outro lado. Já hoje, de tanta pressa, quando passamos por alguém, na rua, quase nunca o interlocutor tem tempo de responder a nossa amável saudação.

Sou do tempo quando as crianças eram bem educadas. Tomavam bênçãos dos pais. Beijavam-nos as mãos. E não passavam todo o tempo assistindo a televisão.

Sou daquele tempo em que o chefe de família tinha lugar marcado à mesa de refeição. E os outros partícipes não ousavam comer sem que o pai, o avô, fizesse uma breve oração.

Sou daquele tempo, saudades se vão, quando ir a missa era uma obrigação. Embora a gente, meninos ainda, assim que a missa terminasse, debandávamos todos rumo à praça principal. Era lá que os namoricos se davam. Com o maior respeito, sob olhares vigilantes dos pais das moçoilas casadoiras.

Sou ainda dos velhos anos de antão, quando a gente, interessados por esta, ou aquela moça, pudicas lembranças, namorávamos na sala de visita, e mal rocávamos a mão na dela, um beijinho inocente podia ser punido com a proibição de nos encontrarmos novamente.

Sou ainda daqueles anos, velhos tempos, saudosos, de quando íamos ao cinema, com a namoradinha de então, sua mãe ia junto, na intenção pura e simples de vigiar a cria, já que a gente nem em sonho gostaríamos de ir além das conveniências.

Sou do tempo, quantos anos se passaram, quando, advertidos pelas professoras, nos calávamos, deixávamos as conversas para a hora do recreio, tínhamos por costume o respeito a quem nos ensinava.

Sou daqueles verdes anos do bonde que rolava nos trilhos. Da televisão em preto e branco. Do cinema mudo. Da primeira copa do mundo aqui no Brasil, quando perdemos para o Uruguai.

Sou ainda presente, quando, na véspera do Natal, com que ansiedade esperávamos pacienciosamente desembrulhar aqueles grandes pacotes, sem saber qual o seu conteúdo. E ainda críamos no Papai Noel.

Sou daqueles tempos quando se podia andar pelas ruas sem medo de sermos assaltados. Sem nos assombrarmos por tanta bandalheira das quais temos notícia pela mídia sedenta de sangue.

Vivenciei ainda o desenrolar dos fatos, de quando ainda se podia viver confortavelmente com um salário mínimo. Já que os preços praticados eram de acordo com nossas posses modestas.

Podem pensar que sou antigo. Quase um fóssil, um dinossauro.

Mas não vão tão longe estes tempos passados.

É só olhar pra trás. E verão que não estou errado.

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