Carnaval e cinzas de Chico Bento

Naquele dia, como de costume, Chico acordou com um estranho pressentimento.

Era quase madrugada. O sol ainda tirava uma soneca debaixo de seu lençol de nuvens. Chovera durante a noite. O solo empapado tornava barrenta a caminhada.

Chico precisava ir ao curral. As poucas vacas já esperavam pacienciosamente a hora da ordenha. Mas o que elas mais apreciavam não era o espremer das tetas. E sim a silagem de milho esparramada naqueles cochos enormes. De longe já se sentia o cheiro azedo do milho armazenado desde o ano passado.

Durante a noite, curta, o velho Chico sonhou com as festas de Momo. Quantos anos Chico não tinha a felicidade de assistir ao carnaval.

Quando criança, moleque ainda, o meninozinho artioso adorava espalhar serpentina, jogar confete nas ruas, naquela folia inocente que hoje não se vê mais.

Depois o tempo passou. Chico cresceu. Tomou-se de responsabilidade. E nunca mais teve a oportunidade de ver de perto a folia do carnaval.

As tarefas da roça tomavam-lhe o tempo todo.

Era um tal de roçar pastos. Tirar leite das vacas. Alimentar a porcada. Arar a terra na época certa. Plantar roça de milho. Colher quando o tempo mandava. E assim, ano após ano, o tempo passava, Chico envelhecia, e não sobrava tempo para mais nada.

Até que naquela manhã, durante a noite, Chico teve um sonho. Sonhou que iria passar o carnaval, que se avizinhava, na cidade mais linda do mundo. Tida maravilhosa não fossem os problemas infinitos que assolavam aquela linda cidade.

De véspera comprou um pacote. Ele constava da viagem de sua roça, perdida entre as montanhas de Minas, até o Rio de Janeiro. Mais a hospedagem num hotel beira mar. Pagou uma fortuna em se considerando o preço baixo pago por um litro de leite. E partiu feliz da vida depois de deixar um tio responsável pelo trabalho intenso que sempre lhe foi peculiar.

Durante a viagem, num ônibus confortável, pensou no que fazer durante aquele feriado prolongado. Durante os primeiros dias tomaria um banho de mar. Quanto tempo se passou desde que Chico experimentou pular as marolinhas do oceano. Era quase criança. Em companhia dos pais.

Assim que chegou ao Rio de Janeiro desfez as malas. Almoçou ali mesmo. Num hotel pertinho da praia.

Com pressa Chico vestiu uma sunguinha que cheirava a mofo. Ela foi usada apenas uma vez, e partiu rumo ao mar. Levou cerca de cem reais para as despesas do dia. Só voltaria ao hotel ao cair da noite.

Para infelicidade do viajante choveu durante todas as doze horas do dia. Chico ficou olhando as ondas se quebrarem na praia debaixo de uma barraca. Nem teve coragem de se banhar no mar.

O primeiro dia passou. E nada de banho de mar.

No segundo dia estava programado o desfile das escolas de samba do grupo especial. E Chico estava com os ingressos no bolso. Ansioso para assistir ao desfile.

Foi até a passarela do samba numa vã previamente acertada na portaria do hotel. Naquele segundo dia tudo caminhou nos conformes. Chico voltou ao hotel satisfeito da vida. Como eram lindas as mulheres que desfilavam seminuas.

No terceiro dia Chico acordou cedinho. Fazia sol. Foi a praia, se banhou no mar, quase se afogou numa onda enorme. Foi retirado das águas por um salva-vidas parrudo. Que só não precisou fazer boca a boca dada a recusa do Chico.

Lá pelas bandas da noite Chico voltou a passarela do samba. Animado pela noite linda que vestia estrelas.

Uma vez assentado ao mesmo lugar do dia anterior sentiu uma mão boba a percorrer o bolso de trás da bermuda. Foi ela quem o aliviou de todo o dinheiro guardado. Chico levou todas as economias para passar o resto da viagem. E ele não ficou com mais nada. E assistiu ao resto do desfile sem lastimar o ocorrido.

Eis que chega o derradeiro dia. No dia seguinte Chico estaria de volta. Já com saudades das suas vacas queridas.

Acontece que, assim que o velho Chico acomodou-se ao lugar costumeiro, prontinho para começar o desfile, um incêndio tomou conta das arquibancadas.

Foi um correria danada. Pessoas pisoteavam umas as outras. Um verdadeiro furdunço se formou.

Quando os bombeiros chegaram e conseguiram debelar o incêndio, dentre os corpos carbonizados foi identificado o do pobre Chico Bento.

Dele não restaram senão cinzas sobre cinzas. O sepultamento dos restos mortais do infeliz Chico se deu numa quarta-feira de cinzas.

Debaixo de uma mangueira, na sua rocinha querida.

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