Abandono

De repente me vi menino. Beirava os dez anos.

O mês de dezembro se anunciava. Com ele as férias de fim de ano.

Sempre fui bom aluno. Caso não constasse no quadro de honra me policiava. Minhas notas chegavam quase aos nove e meio. Principalmente em português me destacava. Em aritmética não era tão bom. Sempre tive aversão aos números. Com eles não tinha grande amizade. Como pelas letras as amava, da mesma forma que me apaixonei pela primeira namorada.

Naqueles verdes anos, assim que dezembro aparecia no calendário, ia, quase sempre, ao sítio de umas tias avós. Tias Mariana e Leonor, em verdade eram tias de minha mãe, não me esqueço do tio Júlio, foram eles quem me introduziram ao gosto que até hoje tenho pela roça. Daí a paixão pelas vacas. Pelos seus filhotes que nascem de pé. Pelos cães tenho o maior apreço. Pelas galinhas não tanto. Embora seus ovos me façam salivar todas as manhãs.

Ainda me lembro da fazenda da Cachoeira. Na zona rural de Perdões ela ficava. E ainda ali permanece, bastante mudada.

Naquela casinha modesta, eram quatro quartos, se não me atraiçoa a memória, uma cozinha pequena, no centro um aprazível fogão a lenha, uma sala na parte da frente da casa, uma despensa pertinho da cozinha, e um banheiro entre os quartos próximos a sala de comida, onde existia uma mesa ancha, assaz disputada pelos primos, assim que a comida era servida.

Ainda me recordo, saudades ameaçam fazer lacrimejarem-me os olhos, da carne de porco guardada em latas de gordura. Do arroz soltinho feito no fogão à lenha, do tutu com torresmo, acompanhado ao angu de fubá novo, do quiabo colhido na horta de couve. Dos ovos de galinha caipira com a gema amarelinha, que era frito na horinha do almoço.

Éramos uma penca de primos a passar as férias naquele sitio aprazível. Quase todos do sexo masculino.

Na horta corria um serelepe ribeirãozinho. Era ele quem tocava um carneiro. Não o mesmo de lã felpuda. E sim um artefato que servia de bomba propulsora que jogava água limpinha até uma caixa que morava no telhado.

Nos fundos da casa existia um galinheiro. Quem comandava as ciscantes era um enorme galo carijó. Ele nos metia medo com suas esporas pontudas e suas asas sempre prontas a voar atrás da gente.

E os pés de jabuticabas? Justamente em dezembro eles se enchiam de frutas maduras. Nós as disputávamos com os marimbondos e as maritacas. Ainda me lembro de quando um destes bichinhos ferroou-me um dedo. Fiz um pacto com eles. Uma jabuticaba pra mim, a mais doce, e as sobras que ficassem com eles.

Naqueles verdes tempos fui presenteado com um cavalinho piquira. Aquele pequeno equino não satisfez o meu desejo de menino. Queria um cavalão enorme. E o piquirinha foi trocado por outro, ao qual dei o nome de Guarani. Quantos tombos levei do arisco Guarani. Mas nada aconteceu ao peão da cidade. Que até hoje conserva o mesmo apreço pelos animais de sela.

O tempo avoou. Os anos passaram.

E aquele menino em alguns anos se transformou no que hoje me tornei. Um quase ancião com alma de menino. Que ainda crê que o Papai Noel existe, só que mudou de cara, perdeu os cabelos, deixou aquela criança no passado, e revive na mocidade dos netos, agora são três a enfeitarem meus dias, até quando? Nem quero saber.

Um dia destes, não sei exatamente quando foi, fui fazer uma visita de saudade àquela fazenda da Cachoeira, onde passei a infância, depois de tantos anos de ausência.

Fui só. Pensando ali encontrar a mesma casinha pequenina. A dos quatro quartos. Da cozinha onde morava o fogão a lenha. Da salinha modesta que dava para a porta da frente.

Apeei no mesmo lugar de dantes. Caminhei por alguns quilômetros. Foi uma caminhada pensando nos tempo de antes. Quando menino para lá me dirigia.

Encontrei outro cenário. A velha casa estava em ruínas. Adeus fogão a lenha. Nunca mais vou ver os quatro quartos. Nem a espaçosa mesa de comida. Nem mesmo a velha bacia onde tomávamos banho.

Fui aos fundos do que restou da velha casa. O ribeirãozinho não corria mais. Por este mesmo motivo o velho carneiro deixou de tiquetaquear. O galinheiro, do galo carijó, nem deu sinais de vida. Muito menos as galinhas por ali corriam. Com receio de virarem canja.

Os pés de jabuticaba ainda se mostravam à luz do dia. Só que de tão velhos foram abandonados. Por falta de cuidados acabaram se transformando em velhas jabuticabeiras. Não mais produziram frutas.

Deixei aquele cenário, intimamente ligado ao meu passado, sentindo por dentro uma indizível sensação de desalento.

Dali parti. Nunca mais voltei. Até hoje, quando penso no passado, na sensação de abandono que senti, durante aquela visita breve, à fazenda da Cachoeira, bate no peito uma angústia enorme.  Do mesmo tamanho quando meus pais se foram.

A ilusão de que o passado retorna, algum dia, foi desfeita naquele dia, quando reencontrei o mesmo passado abandonado. A roça da Cachoeira nunca mais vai ser a mesma. Como eu, como nós, saudosistas, sentimentalistas, que se deixam enternecer pelo singelo fato de que o passado não volta jamais.

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