Quase consegui

Voltar no tempo, retroceder em anos, sempre foi um dos sonhos acalentados por mim.

Logo mais, dezembro em seu começo, enfeito meu bolo com mais uma velinha.

Às sessenta e oito insiro mais um ano de vida. Logo entrarei na casa dos setenta. Logo mais, tomara meu vaticínio seja correto, dobrarei os oitenta. Tomara ainda com a mesma lucidez que agora desfruto. Com a mesma clarividência que penso ter. Embora saiba que a linha divisória entre a louquice a sanidade seja tão tênue quanto  um fio de cabelo.

Meu pai mal chegou aos setenta e oito. Morreu antes que pudesse descansar seu corpo exaurido pelo trabalho diuturno. Ele nunca parou de trabalhar. Dizia ele: “o ócio é o início do fim”. Para ele foi.

Minha saudosa mãe viveu um pouco mais. Aos oitenta e três fechou os olhos, e hoje faz companhia ao meu querido pai no céu.

Nunca me inquietou saber quantos anos devo viver. Qual doença vai me levar ao leito. Com que idade irei me despedir de vocês. Nem ao menos gostaria de saber quem irá me prantear no velório. Quantas lágrimas irão derramar sobre meu ataúde. Quantas saudades irão ficar atrás de mim.

Procuro viver o dia de hoje. Dia lindo, sol amarelo, fresco, que deve esquentar ao dobrar o dia.

Hoje é quinta-feira. Vinte e nove de novembro. Quase o ano agoniza.

Dois mil e dezoito não foi um ano fácil. O país passa por dias atribulados. Uma crise medonha deixou tantos pais de família desempregados. As estatísticas estão aí para comprovar meu escrito. Tomara, com o peito carregado de esperanças, o ano vindouro seja melhor do que aquele que se despede.

E a felicidade volte aos lares de todos os brasileiros, sem distinção de raça, cor, ou status social.

Na eterna procura pela fonte da eterna juventude tudo tenho feito para que os anos não pesem tanto sobre minhas costas ainda rijas e fortes.

Evito vícios maiores. Deixo o carro estacionado sempre defronte a minha casa. Faço das pernas meu veículo para deslocamentos pela cidade. Quando tenho de ir a lugares mais distantes uso uma tal carteirinha que permite aos de mais idade usar o transporte coletivo sem pagar passagem. Hoje, mais tarde, vou a uma unidade de saúde situada na zona norte da cidade. Usando a tal prerrogativa que permite aos idosos andar de ônibus graciosamente. E como existem  velhos, simpáticos, dando risadas entrando e saindo da lotação. Muitos trazem netos a tiracolo. E os tais meninos passam por debaixo da roleta com muita desenvoltura.  Como eu mesmo fazia na minha tenra infância.

Por falar em infância, como aprecio estar entre jovens. Nada contra os de minha idade. Os velhos, como ainda não me sinto, embora ouçam menos entendem mais da vida do que os meninos. Pois já deixaram nos seus rastros toda a experiência adquirida com os anos.

Numa das minhas descidas rua abaixo, antes de chegar onde estou, sempre passo por aquele colégio onde diversas vezes entrei na intenção de falar aos meninos sobre minha outra face.

A literatura faz parte dos meus melhores momentos. Não era antes. Quando jovem profissional de saúde só pensava na medicina. Ela ainda faz parte de mim. Mas reparte com o escritor que me tornei a imensa inspiração que me toma nos braços. Sem querer ela vem. E não tenho como me furtar de deitar no computador quantos textos que aqui estão gravados. Arquivados para um dia se transformarem em mais uma ousadia minha – livros.

Hoje, na intenção de retroceder nos anos, adentrei por aquele portão da escola. Ele estava prestes a se fechar. Como sou amigo, velho conhecido do porteiro, o simpático Maritaca, ele me permitiu ficar alguns minutos entre os jovens. Entabulei conversa com alguns deles. Tentei falar na mesma linguagem da juventude. Até procurei, dentro dos meus limites, usar a mesma bicicleta que eles usavam. A minha ainda tinha rodinhas. Doce infância. Felizes lembranças.

O meu relógio quase voltou nas horas. Pena que os ponteiros sempre caminham adiante. Ao sair da escola já era quase sete e meia. E eu, ainda não velho assumido, criança pensando ser, ainda tinha de atender até as nove e meia. Para me deslocar ao tal ambulatório horas depois.

Entrei na escola pensando na vida. Na possibilidade de voltar no tempo. Quem sabe, convivendo entre jovens, talvez pudesse, dentro das minhas crenças pueris, deixar alguns anos para trás. E voltar a ser menino outra vez.

No entanto, minutos depois, já do lado de fora daquele portão, uma dura realidade mostrou que minha tentativa foi vã. De novo não me vi menino. Foi pura ilusão.

Talvez um dia, antes que a morte me venha buscar, vou continuar tentando ser criança de novo.

No dia de hoje, ao adentrar por aquele portão, na doce ilusão de voltar aos verdes anos, confesso que quase consegui. Na próxima vez tenho certeza que conseguirei. E não custa tentar, como não custa sonhar. Viver faz parte de reconhecer, dentro da gente, a criança que fomos. E quiçá, do outro lado da vida, voltaremos a ser.

 

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