Como é que pode?

Por vezes fico pensando, coisas e loisas banais.

O sono quase sempre me falta. Por sorte a inspiração sobra. Até no presente momento.

Tenho vivido confortavelmente os anos pelos quais tenho passado. Absolutamente não tenho do que me queixar.

Tenho saúde a oferecer aos outros. Inteligência, dizem que sou possuidor. Viro-me em seis idiomas. Confesso que me falta prática. Também não tenho com quem conversar.

Faço das pernas meu caminhar diuturno. Nunca tive paixão por carros. A minha caminhonetinha prateada sempre descansa defronte a minha casa. Dela só utilizo quando tenho alguma carga a carregar.

Enxergo além das entrelinhas. Retrato o cotidiano todas as manhãs. E como amo as madrugadas. Quando a cidade ainda se mostra quase vazia. Salvo alguns passantes com os quais me cruzo pelas ruas. Antes de o relógio apontar sete da manhã.

É quando chego ao consultório. Pra mim um antro sagrado. Lugar de onde avisto quase todo o meu passado. A mesma rua por onde passo ao cair das tardes. Depois que o médico se da o direito de ir aquele clube, de tantas lembranças ternas.  Ele sempre fez parte da minha vida. Desde a tenrice da minha infância. Até quando não mais puder caminhar.

Sempre tive pela noite um mau conceito. A escuridão não me inspira como a luz do sol. Sempre escrevo pelas manhãs. A noite é um desperdício de tempo. Soberbamente para quem não tem tanto tempo ainda para sobreviver.

Tento conciliar no sono depois das dez e meia. Por mim ficaria a noite inteira acordado. Quem diz que o sono faz falta dele não comungo a mesma opinião.

Tenho medo da noite. A negritude do céu me assombra. Prefiro vê-lo iluminado. Como nesta manhã, vinte e oito de novembro, quando quase não fechei os olhos, passei metade da noite em claro. Perscrutando a escuridão.

O sol tem a capacidade não apenas de clarear meus dias. Como da mesma forma aclarar-me as ideias. Que são tantas quantas os anos que tenho passado.

Meu atarefado computador de vez em sempre reclama de tantos escritos amontoados em infindáveis arquivos. Não tenho tido tempo de contar quantos serão. Crônicas, creio serem mais de dez mil. Livros, se fosse possível inserir todas elas em grossos volumes, já que cada coletânea abriga cerca de duzentas, recontando dez mil, façam vocês a conta de quantos seriam.

Hoje dezoito livros fazem parte de minha coleção. Quase um a cada ano. Este ano que quase termina ainda não lancei nenhuma edição.

Como disse antes, ao chegar ao consultório, era mais ou menos seis e meia da manhã, como não tenho consulta agendada para antes das oito, aqui estou praticando a minha arte.

A inspiração me toma de assalto. Em cada pessoa que vejo na rua. No simples sibilar do vento. No clarume do dia. Na luz do sol. Na chuva que por enquanto parou. No passarinho que inda pouco cantou.

Antes de entrar no prédio onde trabalho, dormindo a sono solto debaixo de uma marquise, um cidadão, morador de rua, dormia com a cabeça coberta.

De outras vezes percebi a mesma cena. Mais e mais comum nas ruas de nossa cidade.

Quantos pedintes mendigam migalhas nas esquinas, nos semáforos, fazendo exibições circenses, como se fossem artistas de circo, sem palco, sem picadeiro?

A crise mostra os dentes banguelas em muitos lugares por onde passamos. Mães, com seus filhos no colo, pedem ajuda. Na maioria das vezes não tenho como ajudá-las a atenuar-lhes a miséria.

Este sem teto, o qual percebi dormindo um sono pesado, parcialmente coberto por uma manta rota, foi quem me ensejou o como é que pode.

Eu mesmo não consigo passar nem undécimo da noite de olhos fechados. Penso no dia seguinte. No meu trabalho. Na família unida que Deus me fez presente. Lucubro também sobre os mais necessitados.

Acordo, sem ter dormido nem a metade do sono previsto, e logo saio à rua, na intenção de caminhar um pouco. A seguir descrevo o cotidiano. Com olhos inquiridores.

Não tenho tido a capacidade de dormir como deveria. Dizem que o sono faz falta.

No entanto, olhando aquele mendigo dormir naquela calçada dura, coberto por uma mantinha usada, por certo herdada de alguém que a lançou no lixo, a mim me pergunto: “como é que pode?”

 

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