Aquele barquinho tosco e a enxurrada de lembranças

Como choveu durante a noite. Ainda a chuva cai. De mansinho, céu cinzento, a chuva promete continuar neste final de semana, véspera de eleição, quando os brasileiros deverão fazer uma escolha importante. Quem vai nos dirigir nos próximos anos? Que seja o melhor para o nosso desgovernado país. Assim espero.

A chuva que ainda persiste remeteu-me há anos passados. Era menino ainda. Um moleque endiabrado como meu netinho querido, de nome Theo.

Quando chovia forte, como na manhã de hoje, naquela rua de tantas lembranças perenes, ainda calçada em paralelepípedos, assim que a enxurrada descia destrambelhada pelo meio fio costumava fazer barquinhos de papel.

Eram feitos de folhas de jornal. Frágeis, logo se desmanchavam ao sabor da enchente. Não me recordo bem quão longe eles iam. Pois, dada à chuva que caía constantemente, minha mãe via de regra me convocava a entrar em casa. Com receio de que seu filho primeiro ficasse doente. E acabava impossibilitado de ir à escola.

Por vezes insistia em observar aquela embarcação tosca ir mais adiante. Mas logo, no meio do caminho, ela sempre, desgovernada ia à deriva. E meus olhinhos ingênuos pensavam que o tal barquinho chegaria ao mar. Ledo engano. Ele logo soçobrava. Por motivos óbvios, para mim não tão evidentes.

Aquele moleque imaginoso cresceu. Deixei de ser menino. Fiz-me adulto. No entanto velho ainda não me sinto.

Velho é aquele sapato gasto. Sola furada. Que um dia foi dado a um pedinte que o depositou no lixo.

A chuva caída durante a noite de ontem agora persiste em menor intensidade, tintando o céu de cinza, antevendo um final de semana como o dia de hoje, remeteu-me a velhas lembranças. Ainda vivas dentro de mim.

Mais uma vez olho aquela rua. O dia fumacento quase não permite que a veja por inteiro. Apenas um casario baixo, casas amarelecidas pelos anos, algumas modificadas, me deixam vislumbrar um passado ainda reconditamente guardado dentro de mim.

O velho barquinho de folhas de jornal por certo não chegou a um porto seguro. O papel encharcado foi desfeito pela fúria das águas da enxurrada de então. Mas as minhas lembranças ainda persistem, vivas, nalgum compartimento do cérebro que pensa tanto.

O passado me corteja. As saudades me corroem como o ferro que apenas enferruja se deixado ao tempo. Mas, como tenho sentimento, não sinto os efeitos danosos da corrosão das velhas recordações de outrora.

O menino continua indelevelmente guardado dentro do meu cerne. Embora tenha ficado mais longevo conservo a mesma ingenuidade de quando criança peralta. Ainda acredito nas pessoas.

Faço de conta que o mundo não tem maldades. E se elas existem relevo-as.

Faz muitos anos que deixei aquele barquinho de papel ir enxurrada abaixo. Nunca mais fiz outros barquinhos navegarem depois de menino desfeito.

Mas, depois da chuva que tem caído com frequência nos dias de hoje, um desejo imenso apoderou-se do meu âmago.

Quem sabe, se pudesse retroceder no tempo, ir ao revés dos ponteiros do relógio, voltasse a ser criança, quem me dera voltar àquela rua, de tantas lembranças inapagáveis, de novo a chuva voltasse, dela resultasse uma enxurrada, e nela soltasse outro barquinho de papel.

E esse, mais moderno e impermeável, talvez chegasse ao mar. O mesmo mar tranquilo, sem ondas ou ressentimentos, um mar calmo, de águas frias e cheias de sal. Como aquelas que costumava frequentar, em companhia dos meus pais, quando a gente ia a Cabo Frio.

Agora a chuva serenou. O céu quase se fez azul. Mas não foi o bastante para serenarem as saudades de um tempo bom que passou. Pena que não volta mais.

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