Longe se vão os anos

Depois de certa idade, uma vez vencida a mocidade, o que resta da gente a não serem as saudades?

Ainda me lembro. Olhos rasos d´água.

De quando nasci ainda tinha olhos fechados.

Não foi aqui. Nesta cidade única. Agora chove. Lá fora o céu turvo nos faz lembrar os tempos idos. Mal se vê o céu. Tomara, ao cair da tarde, ele se mostre em outra roupagem. O sol, ah, este astro iluminado. Como ele faz falta para alegrar meu âmago. Dias nublados me fazem triste. Entorpecem-me os sentimentos. Afugenta a alegria que de vez em quando brota dentro de mim.

Como disse antes não vim ao mundo nesta cidade. A qual adotei como pátria amada. Pois, desde quando me conheço quase não arredei pé daqui. A não ser para completar minha formação como médico.

Aqui fiz amigos. Muitos já partiram rumo ao infinito. Da mesma forma que perdi meus pais acabei fazendo filhos, e ganhando netos.

Assim caminha a humanidade. Nascemos, crescemos, e, um dia, sem aviso prévio, somos despachados para algum lugar imprevisivelmente desconhecido. Talvez seja o céu cinzento que hoje pela manhã se deixa ver.

Longe se vão os anos quando perdemos a mocidade. Foram tempos bons. Que deixaram saudades.

E a meninice peralta? Dela só me recordo quando brinco com meu primeiro neto. Logo poderei estreitar nos braços outros filhos dos meus filhos. Eles serão a continuação de mim. Depois que for visitar o outro lado da vida ainda desconhecido.

Longe lá se vão os anos de quando estudava no mesmo colégio onde meu querido Theo passa horas entre coleguinhas da mesma idade. De quando em quando vou apanhá-lo. Ao cair da tarde. E com que lembranças boas deixo aquela escola onde aprendi as primeiras letras.

Ali me fiz jovem. Tomei gosto pelos estudos. Foi lá que aprendi que homem e mulher devem conviver lado a lado, sem distinção de sexo. Para depois se apaixonarem e se transformarem em um casal. Foi bem depois, médico já estabelecido nesta cidade, que resolvi constituir família. E como ela é importante para nos amparar uma vez perdida a mocidade.

Longe se vai o tempo, não guardo ressentimentos, de quando aqui cheguei vindo de um país distante. Hoje passaram mais de quarenta anos. Parece que foi ontem.

Confesso que naqueles anos passados era um tanto soberbo. Pensava que era o dono da verdade. E como agora mudei de opinião. Aprendi a gostar mais de mim assim que envelheci. Sou mais ameno no trato. Mais atencioso com os  pacientes, sejam eles oriundos da medicina privada assim como aqueles que me procuram no serviço público. Talvez a razão desta metamorfose seja a descoberta da capacidade que tinha de deitar no papel as ideias ainda reconditamente escondidas dentro de mim. Agora, graças a esta transformação, sou capaz de escrever. Todas as manhãs, caminhando sempre, neste computador deixo minhas crônicas do cotidiano. Tudo me inspira. Seja a chuva que cai. Qual seja a cinzentice do céu.

Graças à sensibilidade maiúscula que se apoderou de mim tornei-me uma pessoa melhor. Que Deus me permita continuar assim.

Longe se vão os anos quando morava naquela rua. Que daqui se avista pelos fundos. Foi lá que cresci. Foi naquela rua, de tantas lembranças ternas, quanto tinha meus pais por perto, que decidi o que ser no futuro. Tornei-me médico por decisão própria. Não tinha outros médicos na família.

Lá se vão os anos, com a velocidade dos desenganos, quando tive o prazer de conhecer a mulher que hoje dorme ao meu lado. Foi no rela do jardim. A mesma praça que daqui se avista pelo alto.

Hoje fazem tantos anos, que até perdi a conta de quantos foram. Pois o tempo passa. E não permite que a gente pare os ponteiros do relógio.

E se pudesse assim proceder? Tentaria retroceder no tempo? Tornar-me menino de novo?

Pensando bem, já que ainda não inventaram a máquina do tempo, nem descobriram a fonte da juventude eterna, decidi não contrariar o destino. Pois ele tem sido tão bom pra mim.

Não sei por quanto tempo irei continuar por aqui. Hoje tenho sessenta e oito anos. Logo entrarei idade nova. As ideias ainda continuam em plena efervescência. As pernas acompanham o meu caminhar sempre.

Bem sei que longe se vão os anos.  Sei também que a juventude passou. Que a velhice chegou. Mas, quem sou eu para reclamar da vida? Se ela me deu tanto?

Amanhã será outro dia. Talvez amanhã a chuva se repita. Ou o sol vai brilhar de novo. Outro fim de semana se avizinha. Quantos mais terei? De repente a chuva serenou. No seu rastro serenei eu.

Ainda penso na passagem do tempo. E ele passa sem que eu possa interceder em seu caminho.

Longe se vão os anos. Tomara consiga enfrentar os desenganos. Que a vida com certeza vai preparar pra mim.

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