Quando setembro vier

Seu João sempre sonhou com o mês de setembro. Mês quando os ipês florescem. Indício de primavera. Flores multicores desabrocham. Pena que a chuva ainda não deu o ar de sua graça. Tudo está ressequido nos campos da roça.

Naquela manhã de sol brilhando no alto o sitiante acordou antes das galinhas. O velho galo carijó, aquele que dormia empoleirado numa tábua perto da varanda de sua casa parecia haver mudado de pouso.

Foi uma noite quente. Abafada, começo de um calor infernal.

Agosto se despediu melancolicamente. Um friozinho insistente se despediu finalmente.

Seu João, talvez por causa de sua idade avançada, renegava o frio. Tudo nele doía. Desde os pés ao alto dos fios de cabelo.

A sua artrite punha as manguinhas de fora. A urina teimava em não sair. Ele dormia com um urinol debaixo da cama. Que amanhecia transbordando. Deixando naquele quarto um cheiro nauseabundo de urina vencida.

A velha esposa havia falecido no verão passado. Eles não tiveram filhos. Daí a ausência de netos afagar-lhes a barba nevada.

A solidão lhe era a única companhia. Fora as vacas, as galinhas caipiras, os porcos grunhentos, nenhuma alma viva por ali aparecia.

Mesmo assim o velho João era feliz ao seu modo. Era singelo como as flores do campo. Sem vícios. Vivia para o trabalho pesado. Suas mãos caludas bem indicavam como ele era bom de braço.

Naquele ano de dois mil e dezoito o homem do campo completaria setenta e tantos anos. Ainda vendendo saúde. Se bem que algumas doencinhas marotas a ele faziam visita. Mas logo eram escorraçadas pela mesma porta com que haviam entrado.

Setembro chegou. Com seu hálito quente. Nenhum sinal de chuva anunciava-se entre as nuvens claras.

Naquela manhã o velho João acordou com um estranho pressentimento. Sonhou que não chegaria ao verão. Não mais veria as chuvas descerem do alto. Encharcando a terra. Verdejando os pastos.

Era uma segunda-feira. Dia de sol quente. A primeira tarefa do dia foi a mesma de sempre.

Ordenhar as vacas. Limpar o curral. Levar o esterco seco ao lugar onde seria plantada a roça de milho em outubro perto. Tomara as chuvas voltassem logo. Como ela era bem vinda aos ares da roça.

Antes das onze da manhã Seu João deveria almoçar. A janta de ontem era a comida que ele deveria esquentar. Naquele velho fogão a lenha. Onde as chamas ainda crepitavam da noite de ontem.

A vida singela que Seu João levava era a única que conhecia. Quando ia a cidade voltava logo. Ali não era o seu lugar.

Mais dois anos naquela vidinha corrida.

O tempo passou. As estações se sucederam. Ao inverno se sobrepôs a primavera. A ela deveria vir o verão.

Antes de completar setenta e sete anos veio a complicação.

Seu João, durante a noite mal dormida, sentiu uma pontada no peito. Foi ao banheiro pensando tratar-se de uma indisposição qualquer. Vomitou a janta de ontem. Teve um súbito desfalecimento.

Quando voltou a ver a luz do dia não teve forças para se levantar.

Por sorte ali apareceu um compadre. O único que lhe restava naquelas bandas esquecidas por todos.

Logo foi levado a um hospital. Passou dois dias internado.

Quando estava prestes a receber alta, sentindo melhor, ouviu um galo cantar.

Era o mesmo carijó seu amigo. Que se mudou da roça pra cidade.

Foi o canto do cisne feito galo. Nunca mais Seu João viu a chuva cair. Naquela manhã, primavera feita de pouco, o homem do campo despediu-se de nós.

Setembro nunca mais chegou. A primavera para ele terminou. Outros verões Seu João nunca mais verá.

Só eu mesmo para imaginar o quanto foi triste a despedida do seu João. O seu palmo de chão foi passado a outras mãos.

Ainda hoje, quando vou a roça que tanto amo, ainda me lembro de quando setembro vier. E como Seu João amava a sua roça. Pena que como ele, tantos homens bons passarão. E não verão quantos setembros virão.

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