Doce ilusão

Quem ainda não se viu menino, na mais tenra idade, brincando de patinete, de jogar finca e bete, ou mais longe ainda chorando ao nascer?

Quem ainda não se reportou criança, doce infância, indo pela primeira vez a escola, com uma pesada mochila às costas, levando dentro dela não apenas livros, cadernos, assim como sonhos de um dia crescer, criar juízo, adulto ser, mais adiante um ancião com a alma de menino?

Tantas vezes assim sonhei. Tantas e tantas vezes perdi sono. Quantas vezes me identifiquei, tempos atrás, com aquela idade travessa, quando ainda jovem, criança fui, sonhava com a hora do recreio, de olhar de soslaio aquela menina de franjinha caída à testa, que nunca me deu bola, embora quantas vezes pensasse nela, e como foi duro constatar que a mesma só tinha olhos para um colega de mais idade, com quem ela se casou, anos depois.

Ainda sonho. Mesmo de olhos abertos. Quem não sonha não vive. Quem não sonha envelhece veloz como um raio, como as asas dos beija-flores, assim como os amores que vão e vem, com a velocidade de um tufão, que varre a terra deixando poeira atrás dele.

Tenho sonhado tanto nos anos de agora. Não sei se sonhar sempre, dormir cada vez menos, faz bem a saúde, ou se apenas atenua um cadinho as nossas enfermidades.

O fato é que continuo a sonhar. Com os tempos de menino. Crescendo naquela rua que se deixa ver aqui de longe, olhando de viés.

Hoje estou um cadinho mais idoso. Não mais tenho sete anos. Longe dos meus vinte anos. Mais perto dos quarenta. Quase chegando aos setenta.

Mas, tudo tenho feito para que a idade não me pese tanto às costas.

Ajo como criança. Brinco com meu neto como se sua infância fosse igual a minha. Ando como notícia ruim. Sinto-me tão irresponsável como era nos verdes anos. Rio, brinco, uso fone de ouvido. Procuro, dentro da minha idade vetusta, me comportar como se fosse um jovenzinho.

Deixo as preocupações com a velhice esquecidas dentro de um asilo qualquer. Faço questão de não me lembrar de que um dia não mais estarei por aqui. A morte não faz parte dos meus planos. Se bem que sei que um dia ela vai me pegar pelas pernas. Fazendo meu coração parar de bater.

Sempre plugado a internet procuro me atualizar. Leio, estudo, e acabo por concluir que ainda sou criança, apesar da idade avançada que me colhe nos dias de hoje.

Como me sinto bem entre os jovens. Sempre, descendo a rua, ao me cruzar com alguns deles, paro. Puxo conversa. Só não entro na escola por medo de me mandarem para outro lugar.

Hoje mesmo assim aconteceu. Era bem cedo. Antes das sete horas.

O portão daquele colégio ainda estava aberto. Jovens entravam por ele. De repente por ele adentrei.

Não me impediram de assim proceder. O porteiro, desconfiado, sabedor que a minha idade seria compatível com de um professor, ou avô de algum daqueles meninos, permitiu-me a entrada.

Esperei a hora de a primeira aula começar. Era de português. Com receio de ser reprendido pela professora desliguei meu fone de ouvido. Assentei-me à última carteira. Permaneci calado até o final da lição.

Outras matérias presenciei. Confesso que a de matemática foi a que mais me contrariou.

O relógio assinalou que era hora de deixar a escola. Afinal o aluno que morava em mim deveria assumir o posto de médico.

Quando adentrei por aquele portão, aberto naquela hora, tinha a intenção de voltar no tempo. Desvencilhar-me de alguns anos. Quantos, ainda não sabia.

Passei quatro agradáveis horas entre os meninos. Confesso que meu aprendizado foi quase nada. Principalmente na matemática. Amo as letras. Renego números.

Ao sair, era quase nove horas, depois de deixar de fininho a sala de aula, percebi, dentro da minha percepção apurada, que não havia desenvelhecido absolutamente nada.

Continuava na mesma idade com a qual entrei. Sessenta e tantos anos. Quase setenta feitos.

Mas, valeu o esforço. Amanhã talvez faça tudo de novo.

Mesmo cônscio de que voltar no tempo é mais uma doce ilusão.

 

 

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