Vida dura de um Zé Mané qualquer

Céu azul, sol de olhos abertos, final de inverno, começo de primavera.

Zé passou a noite em claro. Embora fosse uma noite escura, fria, nenhuma estrela se deixava ver.

Era mais um desempregado entre tantos que engrossavam filas em busca de emprego.

Zé fazia parte de uma estatística cruel. Mais de treze milhões de jovens, adultos, velhos ainda não aposentados, passavam noites insones pensando no que fazer no dia seguinte.

Naquela data Zé contava com mais de cinquenta anos. Não teve a chance de estudar senão até concluir o segundo grau. Não por falta de vontade. E sim por não conseguir vaga numa escola que vivia em greve. Sempre de portões fechados, professores mal pagos, insatisfeitos com a situação de penúria que sempre viviam.

Naquela manhã, finado agosto, o infeliz trabalhador foi em busca de trabalho. A mesma rotina de sempre. De porta em porta, com um jornal debaixo do braço, mendigando emprego, sempre sendo preterido por causa da idade.

A primeira chance que teve foi numa padaria. Tinha experiência como padeiro. Mas perdeu o emprego por causa de um atraso, motivado por falta de condução, já que o transporte coletivo, um dos ônibus que deveria passar naquela hora foi incendiado por alguns vândalos que apreciavam ver o circo pegar fogo.

Mas não foi desta vez que conseguiu ser empregado. Quem o atendeu, examinou-lhe o currículo de uma página apenas, com má vontade, dispensou-lhe sob a alegação que a vaga havia sido ocupada uma hora antes. Embora fosse inverdade aquela amarga mentira.

Mas Zé não desanimou. Continuou seu périplo pelas ruas da cidade. Na doce esperança de conseguir trabalho.

Naquele dia, uma quinta-feira mal amada, mais uma vez a sorte virou-lhe a cara.

Quando voltou a casa, a qual devia vários aluguéis ao senhorio, sob a ameaça de despejo, já era mais de dez da noite.

Mais uma noite rolando na cama. Pensando na vida dura que o esperava.

Naquela noite levantou-se, durante a madrugada, para ir ao banheiro. Não conseguia verter urina. A bexiga estava prestes a estourar. Uma dor imensa quase o impedia de caminhar.

Aos trancos de dor, misturados à vontade imperiosa de urinar, conseguiu, a duras penas, chegar a uma unidade de pronto atendimento que atendia pelo SUS.

Pena que o doutor, que deveria estar de plantão, por motivo de força maior, ausentou-se daquele pronto socorro. Acontece que ele foi chamado a intervir noutro local distante. E era o único médico que poderia aliviar a dor do Zé.

Uma amistosa enfermeira, entendendo a gravidade da situação do paciente, tentou, por sugestão de uma colega, passar uma sonda pelo canal da urina. Mas foram debaldes as tentativas.

Para a sorte do infeliz Zé uma ambulância passava pelo local. E o levou às pressas ao hospital.

Felizmente a sonda de alívio passou. Dois litros de urina cristalina encheram dois baldes até a boca.

Zé foi encaminhado ao urologista. A consulta foi marcada para dali a um mês. Ele deveria ficar com a mesma sonda até a resolução de seu problema.

Consulta marcada, de véspera, enfim chegou a vez do Zé. Mais de vinte enfermos esperavam pacienciosamente a sua vez.

O doutor fez o tão temido toque. Rabiscou alguns pedidos de exame. Entre eles uma biópsia.

Mais uma longa espera na vida do desconsolado Zé.

Numa sexta-feira, quando não aguentava mais esperar, enfim Zé foi chamado ao procedimento invasivo. Saiu daquele local menos esperançoso ainda.

O resultado não foi outro senão uma doença maligna.  Já bastante avançada, sem chance de ser operado da próstata que lhe entupia a urina.

Mais dois meses se passaram. Desempregado felizmente foi encostado pela previdência.

Zé trocava de sonda a cada dois meses. Mas não conseguia trocar a malsinada sorte.

Aos sessenta anos tive a chance de atender ao pobre Zé num ambulatório de especialidades médicas. Ele chegou alquebrado, aparentando bem mais idade, levado de maca, impossibilitado de caminhar pelas próprias pernas.

O exame alongou-se mais de uma hora. Além de metástases que se alastravam pelo corpo inteiro uma anemia intensa era visível naqueles  olhos sem viço.

Quase não tinha nada a fazer. Encaminhei-o ao serviço de oncologia, sabedor da sua situação em fase terminal.

Deixei aquela unidade, para onde me desloco duas vezes por semana, pensando na vida.

Iguais ao Zé Mané qualquer existem milhares.  Pelas ruas do nosso país. O mesmo que não desejo deixar como legado aos nossos filhos e netos. Infelizmente é assim que o encontro, pena.

 

 

Deixe uma resposta