Manifestação irresponsável

Dizem que o direito de ir e vir faz parte de nossos conceitos. Ou deveria.

Da mesma forma que a liberdade e a democracia são conquistas inalienáveis de todos os povos e nações.

Mas, para aquela pessoa sofrida, por isso mesmo apelidado de Tiãozinho Sofrência, nem sempre estas conquistas foram herdadas de berço.

Nascido em berço paupérrimo.

Aliás, onde Tiãozinho nasceu nem cama havia. Era um arremedo de colchão, encardido, furado na parte de cima, duro como a vida que levava. Desde a tenrice da sua idade.

Seus pais, por não poderem do menino cuidar, levaram-no ao conselho tutelar. O pobre foi deixado aos cuidados de uma creche. A espera de adoção.

Mas, a tão sonhada família jamais apareceu. Quem se habilitaria a ter em seu achego um caboclinho escurinho como noite sem lua, magricela e banguela, ainda por cima meio gago, fanho e cheirando esquisito?

O pobre desafortunado passou anos e anos entre desenganos e a falta de carinho, sem sequer conseguir sair daquele ninho onde outros meninos iguais viviam tristonhos e sem sonhos.

Num dia, era verão calorento, quando levaram os coitadinhos a um passeio pela cidade, eis que, numa curva do caminho deram pela falta do Tiãozinho.

O desinfeliz apartou-se do grupelho. Decidiu-se, por ele mesmo, viver na rua. Foi um passo gigante para alguém da sua idade. Ele contava com menos de dez de infelicidade. Entretanto parecia menos.

Na primeira noite dormiu num banco duro de uma praça. Entre mendigos, gente viciada em drogas, entre cães fiéis, entre uns e outros. Entre nada e mais que nada.

Não tendo como tomar banho foi a uma fonte desiluminada. Estava escura aquela manhã. Tirou de seu corpicho os trajes andrajosos. Entrou naquele tanque sujo e mal cheiroso. Dali saiu mais asqueroso ainda de quando entrou.

Naquele dia primeiro, vivendo nas ruas, conheceu o submundo do qual só ouvira falar pela televisão. Apanhou de um sujeito mal encarado. Era um ladrão bandido, da pior espécie reconhecida.

Na rua nem lhe deram guarida. Passou anos naquela situação de mendicância onde perdeu a infância e a juventude. Nem se lembra de quando a coisa melhorou em sua vida perdida.

Por sorte, aos quinze anos, um senhor dele se apiedou. Tiãozinho foi empregado como empacotador de um supermercado. Foram anos bons aqueles. Graças a sua boa vontade foi levado a função de caixa. Em dois anos apenas, como era inteligente e esforçado, apareceu a vaga como gerente. Sabem quem a agarrou pelos cabelos? O jovenzinho oriundo do nada. Seu nome passou a ser Sebastião. Deixando atrás a Sofrência do passado.

Aos quase trintanos, já estabelecido na vida, por que não subir por ela adentro? Já era tempo de conquistar seu primeiro sonho. Desde anos passados sonhava constituir família, ter filhos, mais de um, quiçá uma penca deles?

Num sábado de folga, ao dar uma voltinha pela cidade, eis que passa pelo seu caminho uma linda moçoila faceira.

Seu nome era Emília. Foi amor ao primeiro passar de olhos. Nem tempo tiveram para se casar. Tudo aconteceu num átimo de dias. Ao casamento compareceram alguns amigos poucos que conquistara em sua vidinha singela.

Emília logo embarrigou. Era o começo de um longo calvário que teve início no primeiro mês de gestação.

A pobre moça tinha pouca saúde. Para enfrentar uma gravidez era um risco mal calculado.

E como passou mal nos primeiros dias. Vomitava de noite. Repetia os vômitos durante a luz do dia.

Sebastião sonhava acordado com o dia em que seria pai. Como nem conheceu o seu jurava ser bem melhor que o primeiro.

No derradeiro mês de gestação a pobre Emília pensava não suportar o trabalho de parto. Quem a visse de frente não saberia dizer que a parturiente estava no nono mês. Era uma barriga pontuda. Sustentada por um corpinho fino. Estava pálida a fraquinha mãe de uma futura criança.

Numa noite escura, e fria, Emília começou o seu calvário. Contrações fortes faziam-na chorar de dor. Tiãozinho, assustado pela situação inusitada, jamais passara por aquilo antes, como não tinha carro usou o telefone para chamar a ambulância do SAMU.

Só que faltava combustível na praça. E a ambulância não apareceu na hora oportuna. A quem recorrer naquela hora de aflição intensa? Foi então que lhe veio a ideia chamar um taxi. Decerto seria a salvação da mulher e do filho tão esperado. Mas o taxi também estava sem gasolina. A espera numa fila enorme num posto da esquina.

Desesperado, entre aflito e com o peito carregado de angústia, o infeliz pai de primeira viagem carregou, em seus braços frágeis, a esposa até a rua.

Mais uma vez Tiãozinho pensou que a sorte iria sorrir em sua direção. Justamente naquela hora de aflição intensa passou um amigo do supermercado desabastecido. A greve dos caminhoneiros completava dez dias inteiros.

Emília empalidecia mais e mais. Com a bolsa rota poderia ter o bebê ali mesmo. Em plena rua.

Uma vez dentro do carro, no banco da frente, Tiãozinho, assustado, não via a hora de chegar ao hospital.

Dois quilômetros adiante uma barreira enorme aguardava o carro que levava a parturiente. Caminhões impediam o progresso de qualquer veículo que ousasse ir a frente. Manifestantes ruidosos, grevistas, bradavam por um país melhor.

Eram pessoas de todas as castas e origens. A maioria vândalos e gente de péssima índole. Nem caminhoneiros eram. Bandeiras verde amarelas tremulavam soltas pelas ruas. Sob apupos da massa ensandecida.

O carro que levava a pobre Emília foi impedido de passar por aquela manifestação intransigente. Repleta de gente inconsequente.

O resultado foi o esperado. A pobre criança nasceu sem vida. No banco da frente do carro. Entre uivos de dor e o olhar desconsolado do pai Sebastião.

Dois dias depois a pobre mãe, de primeira cria, também acabou não vendo a luz de um novo dia. Emília veio a falecer dias depois.

Tudo graças a uma manifestação irresponsável, de um país à deriva. Que não encontra o próprio caminho. Nestes descaminhos a que estamos acostumados. Pena.

Quando me perguntam sobre o país que quero. Fica ao final a resposta. Mais ordem. Mais trabalho. Menos protestos. Mais responsabilidade na hora do voto. Menos futebol. Mais seriedade com o nosso destino.

Caso contrário nem poderemos entoar o nosso hino.

Deixe uma resposta