O dia em que o leite azedou

Fazia frio naquela manhã fim de maio.

Tudo era branco no entorno.

Zé Leiteiro, gente nascida e criada na roça, acordou de um sono mal dormido pensando na vida.

Quanto trabalho o esperava! O último retireiro foi dispensado depois de faltar ao serviço por um final de semana inteiro. Por uma causa bisonha. Chegava ao trabalho mais tarde que a derradeira vaca deixava o curral. Trocando as pernas. Com um bafo de cachaça que se notava há duas léguas de distância.

Desde então Zé Leiteiro cuidava só do seu rebanho. Eram poucas as ruminantes. À força dos dedos tirava do úbere das vacas mais de duzentos litros de leite. Mas era o suficiente para sobrar uns trocados. “Dando pra comer é o que interessa”. Assim dizia o valente homem do campo. Quando algum citadino aparecia por aquelas bandas final de linha.

Chegou junho. Mais frio veio com ele. A pastaria, em plena madrugada, acordava da cor da neve. Era pura geada.

Mesmo sob aquela temperatura do agrado do esquimó Zé leiteiro não perdia a hora. Antes das sete da manhã já estava com o tanque de expansão cheinho pelas bordas.

De quando em vez faltava energia. Dava pena quando o leite azedava. Mas, já acostumado às contrariedades do campo o estoico Zé persistia na lida.

Aos mais de cinquenta anos o abnegado Zé não trocava a sua rocinha querida por nenhuma cobertura na cidade. Era ali que gostaria de ser enterrado. Debaixo de uma vetusta amoreira. Onde diziam que um antigo morador morrera enforcado.

Passaram-se anos naquela luta renhida. Zé não esmorecia quando faltava luz. Nem quando a melhor vaca do curral quebrava a perna no mesmo mata-burro que dividia as terras do Zé com o arreliento Nicanor.

Mas, neste país onde tudo corre à deriva, aconteceu uma greve dos caminhoneiros. O Brasil parou de norte a sul. Fim da gasolina nos postos de combustível.

O lacticínio pra onde Zé vendia o leite não tinha como coletar o produto das tetas das vacas como de costume. E o produto ficava armazenado sem poder ser levado para aquele lugar onde se fazem queijos. Que são vendidos a preços maiúsculos. Enquanto o que pagam pelo leite gordo é uma mixaria que mal da para pagar a ração e muito menos a silagem comprada a outro vizinho de pasto. De nome Dorival.

Não tendo outro caminho para escoar a produção não foi contabilizada a perda em cifras ou em litros. O fato é que o tanque de expansão ficava transbordando pelas bordas. Por mais que dona Maria, a mulher do Zé fizesse queijos frescos. Que entulhavam a velha geladeira. Não tendo a quem vender o queijo. Pois todos os vizinhos estavam na mesma situação. Em aflitivas condições de penúria. Dava pena ver tanta gente boa devendo aos bancos. Já que a maioria pediu dinheiro emprestado e não teve como pagar.

Um dia, pensando que a coisa iria mudar, a greve entrava semana afora, sem tempo de terminar, Zé, antevendo a perda que teria, com o leite sem comprador, com as dívidas a lhe tirarem o sono, que já era pouco, quando terminou a ordenha da tarde, passou a alimentar as vacas, ao ver o tanque cheio de leite puro, como lhe era a alma, teve uma ideia, das muitas que lhe passavam pela cabeça.

Encheu dez latões de leite. Ainda quentinho.

Com a ajuda de um vizinho levou tudo aquilo para a cidade perto. Quem sabe na feira das terças feiras ele conseguisse vender o produto? E diluísse o prejuízo?

Esperou horas vazias. Nada de alguém achegar.

O leite puro, sob o sol do meio dia, ameaçava azedar.

Afinal eram mais de quinhentos litros. Produção inteira de dois dias de serviço pesado.

Como não apareceram compradores nada a fazer. Pensou Zé com seus três latões cheinhos.

De repente, num ataque de fúria, três horas depois da chegada à cidade, Zé Leiteiro acabou derramando todo o leite no asfalto quente. Foi uma fedentina danada. Cujo cheiro empestou as narinas de todos que ali estavam.

No dia seguinte um jornal da cidade estampou em manchete na primeira página.

“Nesta manhã um produtor rural, num ataque de raiva, teve a audácia de derramar sua produção em plena feira das terças feiras. Até a presente data não se sabe o destino do desatinado. Tomara algum advogado consiga livrá-lo da cadeia. Ele não pode pagar a fiança estipulada”.

Até hoje, meses depois, ainda me lembro do dia quando o leite azedou. Tomara que o país tome jeito. Já que todos nós estamos de saco cheio. Sem saber o que fazer. Muito menos quando a paralização vai terminar.

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