Ícaro e a pombinha branca

Desde pequeno, aliás, aquele menininho esperto nunca cresceu além de metro e meio, sempre que se entendeu por gente admirava o voo dos pássaros.

Nascido na roça, mas logo se mudou pra cidade, já que seus pais não tinham como tirar das tetas das vacas o sustento da família, tal era o preço vil do produto, Ícaro acalentava um sonho. De voar pelos ares. Sem saber aonde ir.

Como achava lindo o voo rasante das maritacas em seu grasnar constante no tempo das jabuticabas. A revoada dos pardais era como se o hino nacional fosse entoado por uma banda afinada. Da mesma maneira quando um bando de canarinhos da terra alçava voo esbaforido quando alguém se acercava deles. Tudo era deleite para o menino Ícaro.

Quando um dia, do qual se lembra, sem saudades, quando seu pai engaiolou um destes canarinhos ainda pardinho, preso por descuido num alçapão, numa gaiola acanhada, e ali passou a ver a avezinha triste e solitária cantando como um lamento, era um canto triste, quase um pio, foi quando Ícaro menino, numa manhã fria, ao sair de casa, da sua cama quentinha, ao chegar perto da gaiola do passarinho encontrou o bichinho duro no chão. Ele morrera naquela noite escura. Desconsolado o menino Ícaro enterrou o passarinho numa cova rasa. Por cima do seu túmulo depositou, além da saudade, uma pitadinha de alpiste. Até hoje, na região, dizem que, nas noites de lua cheia ouve-se um trinado agudo. Oriundo do fundo da terra. Mas em verdade ele brota do coraçãozinho amargurado do menino que amava os passarinhos.

Uma vez feito grande, já vivendo na cidade, quando o jovem Ícaro passava por uma praça central, local bastante frequentado pela população dos desocupados, depois da escola, perto do meio dia, quando pombinhos ali catavam migalhas, adivinhem quem dava de comer aos columbídeos? Não era outro senão o jovem Ícaro.

Ele passava horas observando aquelas avezinhas citadinas. Sonhava viver como elas. Sem precisar ir à escola, avoando serelepes pela cidade. Em bando, arrulhando nos telhados, sendo enxotados por quem não aprecia pombos.

Aos dezoito anos, completos naquele mês de maio, fazia um frio invernal, quando Ícaro passou pela praça, assentou-se a um banco perto de onde os pombos comiam, notou uma avezinha que não conseguia voar.

Era uma pombinha branca. Jovenzinha ainda. Parecia, no entender do jovem Ícaro, que ela deixara o telhado de onde foi chocada há menos de dois dias.

A pombinha branca aproximou-se de Ícaro. Pousou em seu colo. Como se ele fosse seu pai.

O jovem amante dos pombos passou a ser o cuidador da pombinha branca. Com ela passava manhãs inteiras. Naquela pracinha central.

Meses se passaram. Contaram-se anos.

Quem passasse pela praça, por volta do meio dia, podia admirar a mesma cena. Um jovem e uma pombinha branca. Como se fossem velhos amigos.

O tempo avoou rapidamente. Ícaro, já não tão jovem, continuava a cuidar da pombinha branca. Ela não aprendeu a voar. Passava o tempo inteiro, ou no colo de Ícaro, ou andando sem pressa aos pés do jovem, já não tanto menino.

Aos trinta anos, mal vividos, Ícaro, ainda se considerava menino. Vivia como se fosse um. Embora contasse com mais de trintanos.

Um dia, na mesma praça, no mesmo banco, do mesmo jardim, Ícaro não apareceu. Todos sentiram-lhe a ausência. Onde estaria Ícaro? E a pombinha branca? Que com ele sumiu?

Um ano, nada de os dois voltarem. O banco sempre vazio. A praça ressentida da ausência de ambos.

Até que, no mês de junho, ano em que estamos vivendo, numa crise danada, sem combustível, supermercados de gôndolas vazias, quem passou pela praça viu.

Naquele mesmo banco, por volta do meio dia, uma estranha aparição se fez notar.

Uma pomba enorme, com aparência de pomba, mas que fazia lembrar-se de gente, pousou naquele banco onde antes Ícaro cuidava da pombinha branca.

Todos que por ali passavam, e conheciam o amor do menino Ícaro pelos pombos, juravam que aquela ave era metade gente metade pomba.

Até que um entendido em aves concluiu. Ícaro acabou se transformando em columbídeo. Acasalou-se com aquela pombinha branca, a quem amava, como nunca amou ninguém, e deste consócio nasceu aquela coisa esdruxula. Metade ave metade gente.

A história do menino e a pombinha branca persiste até hoje. Acreditem se quiserem. Eu acredito. E passo adiante a história, pois quem a viveu fui eu.

 

 

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