Nem sequer imagino

Hoje dormi sobre uma cama confortável, bem agasalhado, em ótima companhia.

O dia de ontem foi de uma rotina enfadonha. Mas, como sempre, o trabalho me encanta. A vida me tem encantado. A fecundidade dos meus escritos toma-me o corpo já idoso transbordando de felicidade. Talvez por este motivo não me sinta tão velho.

Ganho o suficiente para viver confortavelmente. Tenho uma família maravilhosa. Filhos maiores, netos menores. Em pouco tempo mais dois irão acrescer a família com a qual fui abençoado.

Não tenho do que me queixar. Mas por vezes, como nesta manhã bem cedo, ao me levantar da cama, com o frio que faz do lado de fora da minha janela, pensei comigo mesmo: “por que não posso ficar na cama por mais tempo? Passar o dia inteiro sem sair de casa. Assistindo pela televisão a penúria por que passa a minha população. Entregue aos desmandos de um desgoverno que prima pela conduta em prol dele mesmo. Mal se lixando pelos trabalhadores, pelos caminhoneiros estradeiros que declararam estado de greve. Sem tempo de terminar”.

Mas, como de sempre deixei minha casa. Era antes das sete da manhã. Desta sexta-feira, final de semana. Fazia frio. Estava bem agasalhado. Bem sabia das agruras daqueles que usam os carros. Os postos de gasolina estão desabastecidos. Os que a tem cobram preços extorsivos. Pobre dos brasileiros assalariados. Que mal ganham para trazer dos supermercados a compra do mês. Que mal dura uma semana, talvez. Em pouco tempo as gôndolas estarão desabastecidas por falta de produtos.

Ao descer a rua, bem perto de um colégio do estado, ainda de portões fechados, deparei-me com uma cena que me fez pensar no texto de agora.

Dois mendigos dormiam a sono incontido. Com os pés de fora de uma coberta em frangalhos.

Bem perto de uma padaria. De onde por certo seriam escorraçados caso pretendessem tomar seus cafés da manhã.

Sem coragem de acordá-los, talvez não entendessem meu ato, passei pelos dois pensando na vida.

Ontem passei um dia lindo. Sol a pino. De tarde o calor volta a aquecer o dia. A noite volta o frio. O mesmo que nessa madrugada me acordou sem vontade de deixar o leito.

Tudo isso faz parte da minha rotina. Que por vezes me parece carente de alguma coisa. Mas sei que tenho tudo e por vezes me queixo. Não tenho motivo para queixumes.

Ao ver aquele par de pedintes dormindo naquela situação calamitosa, penso, sequer imagino.

Como pode, neste país tão desigual, com um enorme fosso social, persistirem situações como estas? Pessoas sem teto. Sem afeto. Párias sociais. Muitos podem ser viciados em drogas. Mas, caso me perguntarem a razão de serem assim, talvez deles obtenha essa resposta: foram marginalizados simplesmente por terem sido alijados do trabalho digno. Mais dois desempregados que passaram a morar na rua por não terem tido a chance de constituir uma família linda como a minha. E as oportunidades que a vida me ofereceu eles não tiveram as mesmas.

Os motivos saltam aos olhos: falta de estudo, de um ombro amigo, de um berço melhor como foi o meu.

Ao passar pelos dois mendigos nem sequer imaginei o que os levou a serem desse jeito. Por que razão a nossa sociedade, que vira a cara para tais pessoas, ignora os seus anseios, preocupada tão somente com os seus receios, cada um correndo atrás de alguma coisa que se chama trabalho, nem sequer imagino o motivo de um país que tudo tinha para ser rico, vive nesta crise tamanha, neste convívio desigual, que nos afronta os olhos, faz nossos corações baterem em descompasso com nossos passos apressados, e a gente continua sem fazer nada, aceitando o que nos dão boca abaixo, como um remédio amargo com sabor agridoce.

Gostaria de imaginar o porquê de tal situação que não muda com o passar dos anos.

E a gente continua no nosso caminhar insano. Deixando a ver navios nossos iguais. Carentes de tudo, inclusive de dignidade a qual todo ser humano deveria ter o direito, entretanto não a tem.

Nem sequer imagino quando iremos mudar o nosso destino. Quem sabe o país que herdamos de nossos pais, avós, mude em outubro perto? Do jeito que vai não aceito. E creio que nenhum de nós concorde com esta situação aflitiva por que passa a nossa população que enxerga com viseiras nos olhos mas não tem a coragem de tirá-las. Precisamos dar um basta em tudo isso. Não sei se o voto vai mudar o país que amamos. Mas às vezes nos envergonhamos de viver aqui.

Hoje desci a rua pensando na vida. Para mim ela tem sido boa. Amena e florida.

Mas, ao ver pessoas ao desalento, em busca de trabalho e não encontra, nesta fase complicada por que passa o país, sem sequer imagino quando vamos melhorar nossa qualidade de vida.

Talvez quando nossos netos estiverem crescidos. De meninos travessos se tornem adultos reconhecidos. Pena que nem sequer imagino. Tomara não seja mais um desatino de um sonhador. Que sonha acordado nesta manhã tão linda.

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