Bendita escora do Seu Mané

Desde cedo, ainda jovenzinho, o menino Manoel nunca teve inclinação por uma jovenzinha.

Na hora do recreio lá ia ele a brincar com outros meninos. Evitava as meninotas não por culpa de sua decisão de ser homem. Era um garoto, que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones.

Graduou-se em nada. Fugia da escola como o cavalo bravo do laço. Estudar, ser algum profissional diplomado, não era a sua destinação.

Por amar a roça, e seus bichos mansos, nas férias de fim de ano lá ia ele a fazendola de um tio por parte pai. E de lá só saía quando os pais, injuriados com a fama de gazeteador de aulas, mandavam a velha Kombi buscá-lo de volta. Pois a volta as aulas em março se anunciavam.  E caso Manoelzinho não estudasse notável destino o esperaria. Ou seria mais um desocupado. Ou um aposentado precocemente. Por um simplório laudo de incapacidade. Dado por um profissional venal.

E contrariado Manoelzinho voltava aos bancos escolares.

Até os quinze aninhos se sentia a vontade entre folguedos com amigos da mesma espécie. Das mocinhas queria distância. Um dia, por inspiração de outros, aos dezesseis anos teve a primeira experiência com um par de pernas lisas e suas entrelinhas. De outro sexo, bem explicado.

Aquilo não só lhe causou estranheza como o afastou, jurava ele, de outros contatos com uma fêmea. Não por gostar de outros meninos. Sonhava, de olhos abertos, com o dia quando se deitasse com uma garota, na intenção de fazer amor. E acordava todo molhado, e não era suor.

Uma vez adulto na roça do tio parente foi viver definitivamente.

Outra vida a ele acenava com um sorriso aberto de contente.

Aos mais de trinta, vivendo solitário, ainda em plena saúde, uma mulher com quem compartir o leito não lhe fazia falta. Pensava de olhos abertos. Então já havia testado o quentume de uma fêmea. Apreciou bastante aquela primeira noite num bordel mal frequentado.

Viveu até os cinquenta naquela vida de ermitão.

Aprendeu, por forca das circunstâncias, a cozinhar como poucos, lavar a pouca roupa que possuía, a arrumar a cama nas horas tardias. Ele se sentia capaz de assim viver até o fim dos seus dias. Manuel gozava de boa saúde naqueles tempos perdidos onde a imaginação termina.

Já aos quase sessenta começaram os problemas. A falta de família a ele não fazia questão. Filhos, netos, nunca lhe passaram pelas ideias. E esposa, então, jamais lhe foi essencial.

Numa noite quente acordou com uma dor constante na parte inferior da barriga. Tentou urinar e não conseguiu. Foi levado às pressas ao hospital da cidade. E ali chegou com a bexiga estourando. Foi aliviado por um enfermeiro acostumado a atender casos como aquele. Foi operado de próstata. Com relativo sucesso. Mas, como acontece em vezes tantas, a urina não controlava. E urinava na roupa, que cheirava sempre mal.

A partir de aí a saúde o abandonou de vez.

Voluntarioso não se permitiu mudar da roça para a cidade. Continuou ali mesmo. Entre seus bichos de estimação.

Aos mais de sessenta, vivendo como podia, com a coluna vergada prum lado, o coração apanhava mais que batia, os amigos a ele indicaram uma senhora vizinha de circunstância.

Dona Mariana era a pedra preciosa que faltava em seu porta jóia vazio.

Ela não era nem feia nem formosa ao desvario. Faltava alguma coisa naquela mulher envelhecida precocemente. Talvez, com uma dentadura nova, com um Botox aqui, uma tintura nos cabelos brancos, em verdade ficasse como era antes. Em plena mocidade juvenil.

Mas Dona Mariana era tão boa que sua falta de atrativos não pesava tanto na balança. Eram tantas qualidades que ninguém dizia inverdades de sua santidade e pureza d’alma.

Foi um achado a hora que aquela grande dama apareceu na vida solitária do Seu Manuel.

A partir de então, vivendo juntos, não na mesma cama, a vida voltou a brilhar na opacidade dos dias do solitário Manoel.

Mariana cozinhava com desenvoltura. Lavava e passava como ninguém. Na hora de dormir era ela quem cobria o parceiro. E o beijava fraternalmente desejando-lhe bons sonhos.

Já aos setenta nada mais restava daquele homem jovem. Seu Manoel precisava usar muletas para deambular. Os dentes se foram para sempre. A linda cabelereira branca acabou perdendo os fios. Rugas e mais delas sulcavam-lhe a face crispada pelos anos.

Dona Mariana, esposa feita dedicada, amava, à sua maneira, aquele ancião sempre acostumado a viver só. Pensando nada lhe faltar. Até a velhice chegar.

Era uma segunda-feira. Finado fevereiro. Dona Mariana, como de costume, ajudou ao parceiro se levantar. Levou-o cuidadosamente ao cômodo de banhos. A primeira refeição do dia foi a derradeira na vida do casal. Duas horas depois o velho Manoel se despediu da vida e subiu aos céus.  Ainda escorado pelos ombros de sua Mariana. Sua escora, sua bengala, seu amparo, para um lugar melhor.

Todos temos de ter uma Mariana em nossas vidas. Nossas escoras, nossos pontos de apoio, pontos crucias em nossos dias, primordialmente quando a mocidade deixar de existir. Hoje estamos bem. Quem sabe do amanhã? Nem desejo vaticinar.

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