O homem que corria da vida

Como a pressa, o afogadilho, têm nos consumido nestes dias que escorrem rápido.

Nem bem a manhã se fez a noite se declara a lua. Assim que o sol surge no alto nuvens escuras turvam-nos a visão. Hoje estamos em certa idade. Amanhã nova data se impõe em nosso calendário. Mais velhos ficamos. Embora contra a nossa vontade.

Hoje tentei acompanhar dois jovens em seus caminhos rumo à escola. Tentei ultrapassá-los numa fase do trajeto. Na intenção precípua de deixar meus sessenta e oito anos, um cadinho deles, junto as suas mocidades. Presumivelmente ambos exibiam em suas carteiras de identidade menos de um terço dos meus anos. Metade era certo. Não funcionou minha intenção de rejuvenescer dada a proximidade dos dois. Neste exato instante continuo com os anos todos que colecionei vida afora. Amanhã vou estar mais velho. Depois de depois de amanha mais ainda.

Esta pressa que movimenta a humanidade está inserida na gente desde o nascimento até a melhor idade.

E este homem velho, que um dia foi jovem, talvez seja eu mesmo, descobriu o prazer de correr desde há anos e anos passados.

Ele, eu, não usamos carro a não ser em momentos especiais. Para longos percursos, quando as pernas dizem ter prudência, aí sim. Contrariados usamos os veículos poluidores. E sofremos para estacionar. Estamos sujeitos a multas, a discussões acaloradas, a injúrias várias.

Corro distâncias infinitas. Corro não por ter pressa. Corro sim para dar saúde a minha vida gasta.

Já percorri mais de cinquenta quilômetros usando apenas as pernas. E, ao ver a natureza em festa com que prazer vencia os quilômetros, um a um, até transpor a linha de chegada.

Já este senhor, ao qual apelidei João Corredor, não tinha o hábito de se exercitar. Simplesmente levantava cedo. Ia apressado ao trabalho. Para tentar equilibrar o orçamento, pagar as contas que se amontoavam sobre o tampo da mesa, e dar de comer aos filhos boquinhas sempre famintas.

Ele sofria desde o amanhecer ao escurecer. Sofria para pegar a lotação. Para chegar ao local de trabalho eram duas, por vezes três. Ele corria não para ter saúde. E sim para ganhar a corrida contra a vida.

Seu salário era vil. Pouco mais de dois mínimos. E o pobre João ainda tinha prestações a pagar da geladeira seminova. Do fogão de seis bocas que ardiam em chamas a hora do almoço. Comida preparada pela sua dona. Que em verdade mandava no marido. Com ele ralhava por qualquer motivo. E ele sofria calado os maus-tratos recebidos. Tanto pela esposa como pelo patrão zangão.

Um dia foi despedido sem motivo aparente. E foi ao olho da rua numa segunda ingrata. O que dizer à família que o esperava em casa? O que fazer com as contas atrasadas? Como pagar as prestações vencidas? E como dar de comer aos filhos. Eram quatro. Dois meninos e duas meninas.

O pobre infeliz João Corredor, que só correu uma vez apenas para pegar a lotação, mesmo assim a perdeu, partiu em busca de emprego novo. A idade, não tão nova, era um empecilho na luta por um trabalho novo. João contava com mais de sessenta anos naquela fase tumultuada de sua existência. Outros mais jovens eram preferidos. E ele ficava a ver navios com o jornal vencido debaixo do braço. Revendo a lista das oportunidades oferecidas. Mas todas elas queriam jovens. E ele a perdera desde quando a juventude se foi.

Um dia, correndo pelas ruas, era domingo, antes que deixasse a cidade para me meter na estrada, passei pelo João Corredor.

Ele estava no ponto do ônibus. Com um ar de cansaço. O desânimo era evidente em sua cara mal dormida.

Passei ventando perto do tal ponto. Minha intenção era percorrer vinte quilômetros desde aqui a outra cidade perto.

Ao ver aquele senhor, alquebrado, desiludido e desanimado, a espera da lotação, não tive como não parar um instante.

Num átimo lancei a ele a pergunta: “ por que este desânimo? Corra comigo. Correr faz bem. Evita doenças da idade”.

Foi então que ele me respondeu, olhando-me fixamente nos olhos: “ quer saber? O senhor corre para ter saúde. Já eu corro da vida”.

Na volta soube que o pobre João, na sua ânsia de conseguir trabalho, foi atropelado ali mesmo, por um carro em alta velocidade.

A vida atropelara o pobre João na sua luta insana para ser feliz na vida. Se não feliz pelo menos pagar as contas e dar sustento a família. E acabou não conseguindo.

A vida correu mais do que o João. E a morte chegou antes. Muito antes. Bem mais que a vida sofrida que João levara até então.

 

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