De repente me vi nele

Hoje, ao me olhar no espelho, sonolento, era bem cedo, creio que antes das seis da manhã, vi, naquela superfície que reflete a exatidão nossa imagem, não tanto agradável quanto nos anos de antanho, olheiras profundas abraçando-me os olhos, rugas na testa ancha, sulcos quais se fosse a terra recém-partida em torrões miúdos pelas pás do arado, cabelos pobremente distribuídos nas têmporas, no alto da cabeça quase não se pode vê-los mais, um certo ar de desconsolo pela maior idade que de tempos apareceu, e não mais é possível eliminá-la de vez.

Senti-me velho na manhã do dia de hoje – treze de dezembro. Precisamente no dia sete fiz mais um aniversário. Antes eram sessenta e sete. Agora estou oito. Caso fosse possível precisar quantos anos ainda me esperam, filosofo. Ainda bem que não tenho bola de cristal.

Caso fosse morrer no dia de algum dia, qual seria o eleito? Ou como seria o dia de eu partir ao infinito? Um dia cinzento como hoje? Ou de céu azul azul, até demais? Quem sou eu para decidir quando irei partir? Alguém, bem mais sábio, mais responsável, sabedor de o porquê a terra gira no seu eixo imaginário, sabe precisar a exatidão o momento certo de quando eu não mais estarei aqui, escrevendo tanto.

E não irei perguntar ao nosso pai celestial quando será a efeméride.

Confesso: não apreciei a imagem de cansaço que me passou o espelho. Fui de imediato ao pequeno quarto biblioteca para admirar um retrato meu na noite exata da minha formatura no curso de medicina.

Ele parecia sorrir pra mim. Com aquele bigode castanho escuro. Com aquelas madeixas cuidadosamente feitas por um secador assoprando. Com a face lisa como bunda de neném. Sem o queixo duplo que agora se mostra debaixo de minha boca macilenta. Com aquela expressão sonhadora.  De quem tem o mundo a sua espera. Ávido por ganhar a vida usando com maestria o afiado bisturi.

Deixei o meu retrato, dependurado à parede do lugar onde, na estante mostram todos os meus livros, e mais alguns de autores muitos falecidos, grandes mestres na escrita, quem sou eu para ombrear a eles? Um reles grão de poeira fina perdido nas pás do vento que hoje me dá a sensação de um frio inexistente.

Ainda me recordo do dia quando aqui cheguei. Usava um tamanco trazido da Espanha. Precisamente de Madrid. Lá passei mais de um ano inteiro. Tentando me aperfeiçoar ainda mais na dura profissão que elegi como a minha.

Diziam, as enfermeiras que junto a mim trabalhavam, não escrevia naqueles idos anos, que era um tanto presunçoso e arrogante. E ralhava com elas quando me chamavam ao telefone fixo, durante as noites indormidas. E elas faziam o melhor que podiam para que os pacientes operados no dia anterior não fossem ao óbito antes da hora. Eram sondas entupidas por volumosos coágulos de sangue que não passavam pelo fino orifício da sonda de Foley. Eram artérias que voltavam a sangrar depois de amarradas frouxamente depois de um rim retirado por motivos variados. Eram fimoses operadas onde se formavam hematomas enormes por um vasinho qualquer.

O fato que operava durante as manhãs bem cedo, voltava ao bloco cirúrgico na parte da tarde, vinha ao consultório para atender as consultas previamente agendadas, outras apareciam sem avisar, comparecia religiosamente às unidades de saúde coletiva cinco vezes por semana. Sempre caminhando. Ou naquele carrinho azul, creio que da marca Chevrolet, estacionado naquela enorme casa que daqui se avista uma nesga dela, no bairro Centenário.

Quanto tempo ficou atrás desde aqueles idos anos. Foram anos bons. Outros ostentando mais desenganos que alegria construída a duras penas. Pois a ciência médica não é fácil. Que o digam os outros doutores que agora não mais usam branco. Pois o branco enseja pureza. E nós, quase em nossa totalidade fomos conspurcados por um sistema de saúde pública falho. Não por culpa nossa. E sim a compartilho com o desgoverno que nos pensa dirigir.

Hoje vim ao consultório na minha caminhonetinha prateada. Hoje suja de barro grudado. De tanto que ela me conduz a roça que tanto amo. Como a minha querida medicina que amo em igual proporção. Devo ir à roça antes que o dia vire tarde. Preciso levar material ao pedreiro que lá está.

Estacionei minha pratinha valente defronte ao prédio onde mora parte menino de mim criança. Ali mora o Theo Neném.

Assim que desci do carro vi um jovem médico, um anestesista competente e madrugador, saindo do mesmo prédio. Ali deixou mulher, também médica, talvez amamentando sua cria. Ele ia ao mesmo hospital aonde ia mais que nos dias de hoje. A Santa Casa, que costumo chamar de Santa Causa, espera o jovem médico a fazer dormir os pacientes. Para se livrarem de suas enfermidades tantas.

Cumprimentei o jovem anestesista desejando a ele bom trabalho. O mesmo trabalho, um pouco diferente do meu, não nos fazia díspares.

Ao ver o jovem profissional andando lentamente em direção ao hospital, de repente, não mais que num repente, me vi nele. Vestindo a minha roupa de um brancume impecável. Que hoje não me cai tanto bem.

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