Pra ele o fim, sem chance de recomeço

Desde quando a consciência infiltrou-se naquele menino hiperativo seu maior desejo era ser carteiro.

Já em fraldas andava de um lado a outro. Com ela entre as perninhas finas, dizem que as pessoas de canelas finas são trabalhadoras, Antenorzinho ia do quartinho modesto, decorado pelo pai com um mapa mundi, à sala não muito longe, tropegamente. Mas sempre chegava onde queria. Mesmo tendo pelo caminho empecilhos variados. De quando em vez ia de testa ao piso duro do corredor. Mas não era um galinho que o fazia esmorecer. Levantava-se, titubeante, não aceitava ajuda de terceiros e ia adiante.

O pai era empregado dos correios. E ele era o exemplo de retidão do menino Antenor.

A espera do seu progenitor, que retornava exausto do seu metier, o menino, bom aluno na escola, naquele mês de dezembro, já em férias de fim de ano, no boletim só mostrava notas acima de nove, assim que a porta se abria, e o pai por ela adentrava, o garoto logo perguntava quais os percalços pelos quais havia passado na sua longa jornada de trabalho. Que se estendia desde as seis da manhã às cinco da tarde.

“Fora o cachorro bom de dentes que ameaçava me pegar na canela, os endereços falsos, os portões trancados a gordos cadeados, as caixinhas de correspondência que não tinham aberturas por onde cabiam as encomendas, as pessoas que não tinham respeito por nossa digna profissão, que nunca nos ofereciam um mísero cafezinho, o sol que nos castigava a cabeça sem muitos pelos, as botinas duras que nos oferecia a empresa, tudo ia razoavelmente bem em nossa lida diária”.

Antenor ouvia com atenção o relato do pai amado. E sonhava com o dia de passar no concorrido concurso para estafeta. E, como o herói de sua vidinha modesta entrar por aquela mesma porta, com a sacola amarela vazia, com ela andar milhas e milhas nas manhãs de cada dia.

Enfim o sonho do já não mais tão garoto Antenor se fez a luz do dia.

Foi aprovado para o cargo de entregador de correspondência em primeiro lugar na longa lista de espera. E como se preparou para o cargo para ele de suma importância!

No primeiro dia de trabalho, aconselhado pelo pai inspirador, tomou a si o cuidado de ir apenas aos lugares seguros. Mas, infelizmente, foi lhe dado de presente uma região assaz perigosa. Era uma favela de má fama. Lugar evitado pelas pessoas de bem. Embora ao lado de gente boa e trabalhadora conviviam gente de péssima índole.

Quando foi entregar uma carta registrada numa casinha baixa, assim que tocou a campainha a porta se abriu num solavanco. Um sujeito mal encarado, negro, barbudo, mais parecido a um bandido ontem anunciado num jornal televisivo, como criminoso irrecuperável, com uma folha escorrida mais longa que a distância da terra ao sol, o recebeu com dez pedras na mão. Uma delas só não o atingiu por pura sorte. Já a outra pegou-o em cheio na testa. Deixando a marca de um galo enorme entre os dois olhinhos claros. Por pura sorte, ou azar de menos, o carteiro Antenor só não ficou cego por ter se desviado a tempo.

Mesmo assim aquele incidente não o fez desanimar do seu destino errático. A vida de carteiro é feita de ir e vir. De caminhar sem parar. Seja sob um sol forte. Fosse sob uma chuva que faz descer enxurradas de cima abaixo.

Passado o primeiro ano de prova, Antenor acabou aprendendo o duro ofício de entregador de coisas que só o correio é capaz.

Até que um malfadado dia, quando subia uma longa escadaria para lá em cima deixar cartas muitas em barracos debruçados sobre o mar, ao galgar um degrau alto em demasia teve uma forte torção no tornozelo direito. Aquilo foi seguido de um estrepitoso estalido. Que logo foi sabido tratar-se de uma lesão de suma gravidade. Ele não apenas fraturou o osso mais forte da perna de baixo como rompeu completamente os ligamentos que ligam os ossos ao resto da perna.

Foi considerado incapaz para o trabalho por uma junta médica. De andarilho passou a estacionado. De corredor ficou amuletado. Para sempre. Até que morte o livrou em definitivo de sua foice afiada.

Antenor, vocacionado para o trabalho de carteiro, de andador consumido e consumado, agora inválido para qualquer trabalho, para ele foi o começo do fim.

Meses depois foi enterrado. Ao seu funeral compareceram todos os carteiros. Inclusive o pai amado.

Deixe uma resposta