Durante aquela busca infrutífera, debalde foi minha procura. Nada encontrei, senão escombros de mim

Quantas e quantas vezes tentei, retentei, ir fundo no meu baú de guardados, lá redescobrir meu passado, esquecido que estava noutro dia.

E como o passado me faz falta ir de encontro a ele! De nada adianta sonhar com o presente. Se ele se escreve no dia de hoje, sete de outubro, com todas as letras maledicentes. Futuro? Tomara que o meu se alongue além dos parcos anos vividos por meu pai. Minha mãe teve a sorte de viver mais seis deles. E se despediu da gente como eu apreciaria que fosse comigo. De repente. Andando trôpega poucos metros. Amparada por mim. Tomamos o elevador da Santa Casa. Fomos diretos ao bloco cirúrgico. E ali, naquele espaço por mim tão amado, onde passo horas tentando inserir saúde onde a doença se instalou. Melhor que não seja irremediável. Como no caso da minha mãe Rute.

Ela foi ao céu num dia distante. Meu pai foi um cadinho antes. Creio, na minha descrença, que ambos olham por nós lá do alto, com olhares de puro carinho paternais.

Sempre que posso passo por aquela casa de telhas escuras, paredes tintas de areia, janelas vermelhas amarronzadas, que daqui se permite ver pelas costas. Hoje, por volta do meio dia, um cadinho mais, em visita à querida Rosinha, o que restou de bom dos meus pais além de um irmão cinco anos mais jovem, que mora na cidade onde passei os verdes anos da minha vida, me fiz doutor. Hoje o escritor se apoderou de mim com tal furor que não consigo passar sem teclar estas teclas negras e de fundo branco mais que um dia sequer. E ele convive salutarmente com o urologista operador. Entre uma consulta e outra nascem as crônicas.

Agora são dezessete horas e dezesseis minutos dessa tarde quente, úmida, de um sábado repleto de idas e vindas a um lugar onde tenho suado para edificar um castelo, uma casa assobradada, na beira d’água, numa rocinha pequenina, onde não tenho o umbigo enterrado. Mas meu coração pulsa forte por aquelas bandas. Desde há anos e anos passados.

Quando em visita aquela casa da Costa Pereira, pra mim sagrada, fui ao porão. Um subsolo onde meu pai tinha um escritório. Onde a velha Facit servia-lhe tanto. Hoje a velha máquina de escrever repousa em minha casa. Dentro de um baú não tão antigo quanto minhas lembranças perenes. Certo que ela não presta mais a escrever. O computador tomou-lhe a pena das teclas duras. E como eram escorreitas as petições jurídicas que meu advogado pai nela deixava o testemunho preciso de sua correção e sobriedade no conhecer das leis. Dentro de um armário, entulhado de livros tantos, de fotografias amarelecidas pelos anos, desentoquei uma pasta cheia de escritos dele.

Acabei passando os olhos em algumas delas.

Ali, naquela pasta no fundo da prateleira, petições, escritos, todos com o timbre Paulo José de Abreu. E sua assinatura inconfundível. Algumas, se não me falha o tirocínio, eram coisas deixadas como lembranças de sua luta advocatícia contra outro advogado, contra o qual meu pai peleou, em defesa de clientes vários. Nalgumas ações judiciais creio meu pai saiu-se vencedor. Nem tenho ideia de quanto ele percebeu de seus defendidos. Acredito que foram migalhas. A exemplo de um tio meu, o saudoso enorme criminalista doutor Francisco Rodarte. Que faleceu anos mais tarde. Seu vizinho da casa de baixo. Hoje ainda a venda. Como não está a venda o meu passado.

Durante a visita a casa dos meus pais, hoje ela pertence à querida Rosinha, fui mais além. Por outra escada, cuidadosamente pulando degraus, até o pé de jabuticaba. Não sei por quem foi plantado. Se por meu avô Rodartino. Se por meu pai mesmo. Ou por intenção de minha mãe Rute. Todos hoje moradores do céu.

Passei alguns minutos chupando aquelas frutinhas doces como doce foi meu passado. Minha amada esposa Rosa estava comigo.

Uma vez lá no alto, no âmago da casa dos meus pais, tivemos o cuidado de levar algumas lembranças do meu passado. Creio que meu irmão Fred não vai se opor ao meu atrevimento. Não lhe pedi o consentimento. Sou o mais longevo dos irmãos. Espero ter tido sua anuência. Se não, perdoe-me, mais uma vez.

Naqueles instantes breves passados no porão da casa dos meus pais, no escritório onde morava a velha Facit branca, na busca dentro do velho armário embutido, onde livros jurídicos que talvez sejam de interesse de meu filho advogado, Stenio, se perdem entre tantas coisas intrinsecamente ligadas ao meu pretérito. Naquela busca infrutífera acabei não encontrando o moleque artioso que morava em mim. Apenas e tão somente um velho choroso, nostálgico e de rica sensibilidade.  Naquele passado pra mim tanto caro, debaldes foram as tentativas malogradas de voltar atrás. Tanto, que nem sei dizer quanto…

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