Mais um dezoito de outubro

Em minha conta incerta faz quarenta e três anos que esta data se repete. Quando digo, ou escrevo, no meu caso. Médico formado naquela turma de um mil novecentos e setenta e quatro, na UFMG, palco – Belo Horizonte.

Éramos divididos em dois pelotões. Os que entraram no vestibular em primeiro lugar. E outros que adentraram a difícil trilha da medicina seis meses depois.

Cento e sessenta jovens tidos como vencedores. Em suas cidades de origem eram considerados brilhantes. Futuros doutores, portadores de canudos, em nosso caso era um certificado bem inspirado, como se fosse um pergaminho antigo. Onde constavam exatos cento e sessenta nomes. Ladeados por outros, mais antigos, nosso paraninfo, o diretor da faculdade, e ilustríssimos doutores, a maior parte não mais está entre nós. Decerto montaram consultório no céu. Ao lado de Deus Pai, Nosso Senhor e seus anjos de asas brancas, simpáticos querubins, alados seres que avoam sem poluírem o espaço celeste com a fumaça cinzenta que daqui de baixo se vê.

De nossa fornada de quarenta e três anos de formados restam, creio eu, bem mais da metade. Somos jovens ainda para percorrer a distância infinita de aqui da terra ao azul diáfano que deve acinzentar-se logo mais.

Encontros de formatura são organizados por uma comissão designada para tal a cada dois anos. Já fui a alguns deles. A outros me fiz ausente. Não por falta de vontade de rever velhos amigos, colegas de fardas, bem mudados em sua roupagem epidérmica dada à idade que passa rápida com o voo do beija-flor azul. A cada ano mais e mais notícias ruins do falecimento de um, daqueloutro. Quem seria o próximo na lista a qual evito listrar? Trata-se de uma interrogação que não desejo nunca saber a resposta. Jamais.

Naqueles primeiros anos, quando ainda jovens militávamos pelos caminhos tortuosos da medicina as coisas eram diametralmente díspares. Não havia tantos profissionais usando branco, hoje nossa farda mudou. Ao invés de calças impecavelmente brancas, camisa da mesma cor, sapatos de um branco lençol de linho branco, os médicos de agora, não faço parte deste contingente, usam e abusam de camisas sociais, muitos engravatados, calças sociais, sapatos de bico fino e cor escura, e jalecos com seus nomes e especialidade gravados em lugares distintos no tal avental indicativo que eles são médicos doutores.

No meu saudoso tempo passava noites indormidas dentro dos hospitais. Em plantões que varavam noites. Iam madrugadas adentro, estendiam-se pela luz do dia, até terminar o movimento quando a noite se anunciava sonolenta.

Foram mais de quarenta e três anos em que o dezoito de outubro nos indicava que era este o nosso dia. Desde quando Hipócrates emprestou seu nome ao nosso juramento, muitos deles mais.

Como disse a prática da medicina não nos enseja a comemorações. De outra crônica passada questionei a data com este título. Festejar o quê?

Depois de acontecimentos funestos que nos enlutam o dia dezoito de outubro, exemplos pululam por aí, a mídia ávida por noticiar coisas de mal calado, no caso das boas ela se abstém, rotineiramente são manchetes dos jornais: médico preso por mau uso do uniforme, outro tem o diploma cassado por dormir em um plantão. O pobre estava exausto. O terceiro foi difamado pelo simples fato de ter recusado a apertar a mão de um consultante, num atendimento apressado pelo SUS, quando recém o urologista estava com o dedo enluvado numa luva de má qualidade, depois de um exame de próstata. Mesmo assim o paciente dele se queixou ao ministério público, e quase saíram às vias de fato. Noutro dia, infeliz ocasião, um colega acabou sendo vítima de um bofetão de um acompanhante malcriado. Que queria por que desejava que seu acompanhado fosse atendido em primeiro lugar. Sendo que, segundo a agenda ele em verdade estava em último. E outros casos símiles estão registrados em BOs em delegacias de polícia pelos quatro cantos da nação.

Em meio a este barril de pólvora o médico de hoje resiste estoicamente. Entrincheirado entre fogos cruzados: de um sistema de saúde falido. E o paciente que escuta na imprensa marrom que a saúde é um direito de todos e dever do Estado.

Mais um dezoito de outubro chega. A cavalo? A pé mesmo? Ou de ambulância?

Depois de testemunhar por tantos anos a medicina, desde quando em minha querida Lavras cheguei, a sua evolução involutiva, concluo: em poucos dias mais um dezoito de outubro aparece. Com a sua cara desconsertada. Com sua alma injuriada. Com sua paciência esgotada.

Que ele chegue! A galope ou num trote fraco. Sei que ele chega. E vai. Pra onde? Não sei…

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