Agora eu posso

Entre poder e querer uma longa distância se interpõe.

Já que a nossa vontade nem sempre fala mais alto.

Querer todos podem. Mas ver concretizado nosso desejo nem sempre é satisfeito.

Eu queria abraçar o mundo. Mas quem diz que ele pode ser abraçado? Já que o mundo gira e nossos braços não acompanham o girar do mundo.

Muitas vezes pensei que, uma vez aposentado, poderia passar horas a fio assentado a um banco da praça. Mas quem diz que o meu salário de aposentado seria suficiente para manter minha família. Ai sim. Teria de me desdobrar numa outra ocupação qualquer. Pena que uma vez passados da idade a gente não consegue outro emprego. E temos de nos sujeitar a um serviço muito aquém da nossa capacidade de dantes.

Agora eu posso. Pensava eu.

Fazer apenas e tão somente o que gostaria de fazer. Ficar a toa nem querer querendo. Mas, na idade em que me coloco. Uma vez passados dos tantos anos. Quem iria, em sã consciência, empregar um velho. Melhor dizer um idoso. Não vaidoso já que nessa idade não mais tenho vaidade. Contento-me com muito pouco. Quase nada. A permanecer na calada da noite de boca calada. Para não incomodar aquela que tenta dormir ao meu lado. Mas, uma vez em plena madrugada, sem querer solto um flatus. E ela me adverte, roncando do lado: “se fizer isso de novo vai ter de dormir com a empregada”. Era justamente isso que tinha sonhado. No entanto, se por acaso de um descaso manifestar meu desejo vou ter de me mudar de apartamento. Já que ainda devo mais da metade das prestações. E minha velha é que tem renda. Já que a minha reles aposentadoria mal dá para encher a panela vazia.

Agora eu podia. Pensava eu. Mas quem diz que poder é conseguir?

Nessa altura do campeonato fui alijado do time. Assentado a um banco da praça nem vejo mais o tempo passar.

Uma comadre minha. De nome Razapina. Assim chamada em honra e glória daquele remedinho usado para dormir. Uma vez passada da idade. Já que ela ultrapassou em muito a mocidade.

Quando ela passou e muito dos sessenta. Ela não diz a idade nem mostra a carteira de identidade.

Quando estava prestes a completar a maioridade. Ela se amasiou a um viúvo o dobro da sua idade.

Por sorte dela ele morreu antes dos cinquenta. E ela resistiu estoicamente a um montão de enfermidades.

Primeiro foi uma erisipela que quase lhe cortou a perna. Depois uma bronquite asmática que a fazia sufocar ao menor espirro.

Aos quase sessenta. Naquela idade desprovida de vaidade. Uma infecção na mama direita a levou à mesa de operação.

Foi diagnosticado um câncer já avançado naquela mama de muitos quilogramas. Um prognóstico sombrio foi-lhe dado de presente no seu aniversário de sessenta.

Mesmo assim ela celebrou os anos que lhe restavam. Seriam quantos? Ela nem vaticinava. Apenas orava.

Dona Razapina era uma mulher de fibra. Não se abatia por qualquer desventura.

Acontece que, um filho adotivo, o qual ela amava mais que a si mesma. Resolveu se casar.

Era um jovem maduro. Com a fama de pão duro. Mais sovina que o poste da esquina que se esquiva do mijo do cachorro que nele deseja urinar.

Mesmo sujeita a ver sua vida ter fim dona Razapina não perdia a fleuma. Gastou o que tinha e não possuía na festa de casamento do filho postiço.

Acabou pedindo dinheiro emprestado. Prometeu pagar quando recuperasse a saúde que não mais tinha.

Na véspera do casamento do filho adotivo. Depois de ultimados os preparativos. Dona Razapina pensou consigo mesma.

“Agora eu posso descansar”. O que de fato aconteceu.

Dias antes da efeméride um mal súbito levou a pobre senhora a visitar Nossa Senhora no céu.

Daí o meu pensar. Se agora eu posso, não se deve postergar pra depois.

 

 

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