O tempo tem o dom de amolecer a gente

“Não se arrependa de envelhecer. É um privilegio negado a muitos”.

Dizem ser a velhice uma fábrica de monstros. Ao que eu concordo em parte.

Certo que aqueles traços belos, enfeitados por madeixas que podem cair-nos ombros acima, aquela face lisa, onde rugas ainda não foram desenhadas, aqueles olhos viçosos, de onde exalam argúcia e rapidez de pensamentos, aquele riso não sisudo de um velho, melhor chamá-lo de idoso. Pois velho me cheira a mofo ou bolor. Aquele ar de troça quando passa pelas ruas alguém de maior idade, simplesmente ignora o seu passado venturoso entremeado de derrotas. Todos eles um dia desaparecem.

E, ao revés de ser uma linda menina, que depois de transformou numa moça ainda mais bela, e esta mesma jovenzinha maravilhosa, ao ver os anos passarem. Acaba mais parecendo uma velha, ou idosa, mesmo que vaidosa, acaba perdendo seu viço. E murcha como uma flor sem alguém a cuidar da mesma. Regá-la a cada manhã. Espalhar adubo ao seu pé. E conversar com ela dizendo-lhe: “linda florzinha amarela. Amanhã. Ou um dia depois, você pode despencar de sua árvore mãe e cair ao chão. Como a flor do ipê que inda viva e maravilhosa deita-se ao solo seco e esturricado. Sem chance de de novo alcançar com vida as suas florzinhas irmãs. Que do alto se despedem delazinha sem dizer-lhe adeus”.

Pra mim o tempo acaba por amolecer-nos ao passar dos anos.

Quando meninos, crianças, como um dia fui.

Naquela rua que daqui se avista pelo traseiro. Tinha uma pele de pêssego por madurar. Meus cabelos alourados eram fartos e macios. Fáceis de pentear. Lógico que minha estatura era bem pequenininha. Também pudera! Ninguém nasce grande pra depois encolher. Alguns podem dizer: “quando se passa dos tantos entas a nossa altura decresce. Mas a nossa sabedoria espicha. Depende de não desejarmos parar de aprender”.

Eu, em menino criança, e como esse tempo parece contar anos e desenganos, muitos deles, era um tanto arredio e briguento. Embora tenha levado tundas tantas por não levar desaforos pra casa, eu não me arrependia. Voltava ao ringue de lutas (certo que não existiam), era na rua mesmo que as brigas se davam. Em volta dos contendores uma torcida desorganizada se formava. Confesso não ser eu o favorito para vencer a disputa. Pois, além de ser considerado cdf, e não passava cola pra nenhures de meus colegas. Era bem bonitinho eu moleque. Um garoto mimado. Não tanto alto como a maioria dos colegas da minha classe. Mas que conquistava as coleguinhas com meus versinhos e meu português apurado.

Ainda jovem esculápio. Oriundo da Espanha. Precisamente de sua capital a linda Madri.

Aqui apeei pensando ser a última e mais apetitosa bolacha do pacote.

Ainda tinha longas madeixas. Um bigode preto como a asa de urubu uma vez adulto. Uma pinta por baixo dos lábios carnudos. Que, dado a cor vermelha que ostentava parecia ter usado o mesmo batom de minha primeira namorada.

Sempre, depois de ensinar os enfermeiros a me ajudar nas cirurgias, não me acostumei a operar com meus colegas. Enfrentávamos, só nos dois, tendo o anestesista do outro lado do campo operatório, retiradas de enormes cálculos renais. De próstatas entupidoras da urina chamadas de próstatas hipertrofiadas. E, sozinho no campo cirúrgico, usando meus dez dedos como auxiliares, operações ditas mais simplesinhas como fimoses, vasectomias, varicoceles sob anestesia local. Militava na bolsa escrotal retirando testículos enfermos abcedados ou em consequência de tumores benignos ou malignos. E esvaziava gigantes hidroceles minorando o volume das bolsas escrotais.

Era eu mais eu.

Naquele início de profissão achava ser capacitado de trabalhar sozinho tanto na Santa Casa como nos demais nosocômios.

E não dormia quase nada. Como ainda acontece agora por temer as noites. De tanto ser chamado pelo telefone preto que tocava e relinchava como cavalo ao ver a sua égua amada presa noutro pasto. E, as enfermeiras, preocupadas por me despertarem no melhor do sono, falavam, com suas vozes macias e me chamavam para desentupir sondas por enormes coágulos que não saíam pelo lume das mesmas.

Antes, desde os tempos de colégio, é verdade que a gente sai do Gammon, mas ele não deixa de estar dentro da gente. Não por sentirmos saudade. E sim por este motivo o qual deixo escrito agorinha mesmo: nossos filhos, ou netos, continuam a estudar dentro dele. Até encontrarem seus caminhos. Como eu tenho certeza que encontrei o meu.

Desde aqueles verdes anos os numerais não me seduziam. A eles prefiro as letras. Sejam maiúsculas ou menorzinhas.

As quatro operações não eram de meu melhor aceite. Dividir, multiplicar, somar ou diminuir, me faziam ter dor de cabeça.

Quando o professor ou a professora deitava no quadro negro equações ou logaritmos eu pedia pra ir ao banheiro. Fazer o quê? Nada a não ser me livrar da chatice daquela aula. E como era bom chegar a hora do recreio e ver aquela menina. A qual todos cobiçavam e elazinha mal deixava seu caderninho pautado para ali deixar escrito frases de sua autoria e de alguns poetas da época. Como o gauchinho lírico dono de versos encantadores que morava num hotel central de Porto Alegre. E, por falta de pagar o aluguel estava prestes a ser despejado. E só não o foi por intromissão do seu dono- o jogador de futebol aposentado cujo nome é Falcão (Quintana).

Dividir, pra mim, era nome feio. Somar a palavra que mais apreciava. Multiplicar da mesma maneira mal sabia quanto dava dez vezes cem. Já diminuir, no meu entender, era palavra desgraciosa por nunca, jamais. Tomei gosto por diminuir pessoas.

Já hoje, de coração amanteigado, amolecido como barro grudento como dantes acontecia no morro na subida de minha roça durante o tempo chuvoso, aprendi que o ato de dividir dá no mesmo que ganhar um novo amigo.

Sempre fui um eremita desde quando comecei a minha labuta como médico urologista. Isso nos idos anos de 1977. Pasmem! Quantos anos se foram desde quando aqui cheguei.

Atendendo nos meus consultórios. O primeiro deles foi no prédio da pessoa maravilhosa que nos deixou. Seu nome era Toninho Marani. Era uma sala alugada a preço mais que camarada como seu dono era.

O segundo foi aqui pertinho. No centro espírita antes chefiado pelo douto senhor Atanael de Moura Maia. Que infelizmente também nos deixou.

Já o terceiro, de propriedade de mim mesmo. É onde estou agora. Neste sétimo andar do edifício das clínicas à rua Misseno de Pádua 352, sala 701.

Na presente data minha agenda é simplesinha: aqui chego antes das seis da manhã. Saio lá pelas nove e meia quase dez. Retorno quando as horas mostram treze.

E me despeço deste meu refúgio onde o médico e o escritor se alojam, antes que a tarde se metamorfoseie em tarde alta.

Com a crise que nos assola, neste país a deriva, muitos médicos preferem dividir os consultórios entre três ou até mesmo quatro colegas de especialidades díspares.

Tornou-se quase uma necessidade.

No prédio onde atendo são raros os colegas que militam solitários numa só sala.

Agora, prestes a completar cinquenta anos de graduado reaprendi a dividir.

Tenho muito a agradecer, mais uma vez, ao LTC. Foi exatamente na piscina do clube que conheci um colega ainda quase imberbe na medicina. E como ele me parece ser bom amigo e inteligente. Ainda em dúvida sobre qual especialidade abraçar ele sempre pede o meu aconselhamento. E eu o dou graciosamente sem cobrar a consulta.

Seu nome é Philipe. Desenhista de figuras que perfeitamente poderiam ilustrar atlas de anatomia com tal precisão que, quando a gente passarinha os olhos. Incredulamente nas suas lindas gravuras parece que adentramos músculos e aponeuroses, vísceras a órgãos macios como o fígado ou ambos os rins.

Com ele irei dividir meu espaço. Embora tenha por ele (o espaço), em alta estima, acredito que a juventude do meu colega Philipe em muitíssimo vai me acrescer.

Voltando ao título deste texto de hoje. A tarde irei me despedir de vocês, leitores, não da vida, pois I am going to Miami this afternoon. “O tempo tem o dom de amolecera gente”. Não tenham dúvidas.

Esperem chegar à idade provecta e me digam que não…

 

 

 

 

Deixe uma resposta