Aquele fatídico janeiro

Naquela manhã de segunda, dia onze de janeiro, mês pela metade, Anacleto acordou pensando na vida.

Nada tem sido fácil para aquele jovem em começo de vida.

Teve de interromper os estudos o ano passado. Desde quando começou a pandemia o pobre jovem, estudioso, esforçado, vindo de um lar desestruturado, aos menos de dezoito anos se viu em sérias dificuldades.

A casa onde morava, uma república de estudantes, onde dividia o quarto com mais duas pessoas, de repente teve suas portas fechadas. A vigilância sanitária acabou lacrando as portas por falta condições mínimas de higiene. Da noite para o dia Anacleto acabou sendo despejado.

E ele acabou sem teto. Sem emprego, vivendo à custa de algumas parcas economias, Anacleto acabou se tornando mais um andarilho.

Perambulava pelas ruas sem eira nem beira. De porta em porta mendigava. Por vezes passava fome. Na maior parte das vezes viravam-lhe a cara com estas palavras ásperas: “vai trabalhar vagabundo”. Mal sabiam eles que, o que mais precisava o infeliz moço era uma oportunidade de trabalho. Um afago. Um gesto de carinho.

Mesmo sofrendo na pele toda a sorte de infelicidade Anacleto perseverava.

Mal tinha concluído o segundo grau. Seu sonho era se formar em contabilidade. Sentia-se a vontade entre os números. Amava fazer contas. Era o tipo de jovem para quem a vida via de regra virava as caras.

Naquela manhã de segunda Anacleto foi à cata de trabalho. Acabou mais um dia na rua da amargura. Sem emprego, de repente se deparou com a situação cada vez mais aflitiva.

Era uma noite chuvosa. Por não ter onde passar a noite Anacleto teve de dormir debaixo de um viaduto. E a chuva caía incessantemente. A enchente acabou alagando tudo ao derredor.

O pobre Anacleto acordou com água até o pescoço. Todo molhado. Ensopado até os ossos.

No cair da tarde o pobre começou a tossir. Era uma tossezinha acompanhada de uma febre persistente. Todo o seu corpo doía.

Esperou horas perdidas para ser atendido numa unidade de saúde. Acabou sendo internado sem previsão de alta.

Recebeu alta com o diagnóstico da tal virose que cada vez mais se alastrava pelo mundo inteiro. Foi-lhe prescrito além de antibióticos, medicamentos para atenuar-lhe a dor. Além de ficar em isolamento. E de se alimentar bem.

Mas como se livrar da dor que agora sentia? Se não tinha nem onde morar? Restava ao pobre Anacleto o leito duro de uma calçada. E tentar a sorte mais uma vez.

Quem sabe, naquele começo de ano, já que o anterior fora um dos piores que já viveu, naquela sua vidinha insossa, quem sabe alguma chance de emprego, numa loja qualquer, como estagiário, o que quer que fosse, abrissem-lhe as portas. E recomeça-se o ano em condições dignas. Era com o que sonhava. Desde cedo. Quando ainda criança. Sem as mínimas condições de ser feliz.

Foi numa sexta-feira, treze, do mesmo janeiro fatídico, que o pobre Anacleto piorou de vez.

Foi reinternado em péssimas condições. Faltava-lhe o ar. Quase não podia respirar.

Conseguiu vaga numa unidade de tratamento intensivo. Mas já era tarde demais.

O pobre Anacleto foi sepultado em cova rasa. Como um indigente qualquer.

No seu atestado de óbito foi declarado mais uma vítima do coronavirus.

Aquele foi seu último janeiro. E ele contava com apenas vinte anos.

 

 

 

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