Vítima do desterro

Ainda me lembro da derradeira vez que fui a Portugal.

Ali aprendi como se fala um português castiço. Foi através de um motorista de taxi que aprendi: gajo é um termo pejorativo. Só usado a pessoas desconhecidas. Caminhoneta é o temo usado para ônibus. Foi o meio de transporte que usei quando de minha viajem a linda cidade do Porto. Encantei-me com o santuário de Fatima. Ali orei. Pedi pela felicidade dos meus patrícios.

Quando de uma passadinha por uma feira de souvenires, na intenção de levar dali umas lembrancinhas, o vendedor, um senhor sobriamente educado, quando dava de olhos naquelas quinquilharias, ele me colocou a vontade com a seguinte frase: “está a dar de comer aos olhos”?

Foi quando percebi como aquela gente hospitaleira faz bom uso da nossa linguagem. Torna-se fácil encontrar na pátria lusitana como se deve tratar um idioma, onde tantos personagens ilustres deixaram suas marcas indelevelmente gravadas em compêndios que até hoje ilustram as bibliotecas, neste nosso país onde a língua pátria é tão vilipendiada.

Deixei Portugal sem encontrar minhas raízes. Uma prima, com quem trocava mensagens pela internet, não foi encontrada. Tereza Rodarte é natural de uma cidadezinha mais ao norte. Por onde não passei. Ai que saudades do velho Tejo. Com suas águas límpidas e piscosas.

Porto, Coimbra dos jograis, bem retratam o que seja Portugal. País de onde viemos. E pra onde irei quando a oportunidade me acenar de novo.

Faz um curto espaço de tempo que moro naquele beco.

Trata-se de um apartamento no andar de baixo onde moram meus dois netos. O outro mora mais longe. Espero um dia tê-lo aqui. Pertinho do meu afago.

Sempre que chego ao meu consultório, quase sempre a mesma hora, deparo-me com algumas pessoas dormindo ao relento.

Trata-se de um casal. Ambos são claros. Um tanto desgrenhados pela noite mal dormida eles acordam quando eu passo.

Ontem, ao cair da noite, quando desci a rua, na intenção e pegar um sanduiche, deparei-me com ele. Era a mesma pessoa que sempre encontro debaixo daquela marquise. Dormindo a sono solto. Acompanhado por uma mulher. A qual imaginei ser sua companheira de infortúnio.

O tal homem interpelou-me com um sotaque velho conhecido: “desculpe-me. Não sou de incomodar os outros. É que sinto fome. Não pode me dar um prato de comida”?

Sem saber o que fazer, pois não tinha nada em casa para oferecer, a não ser parte do meu sanduiche, assim o fiz. Soube que ele era oriundo de Portugal. Precisamente de Trás-os-Montes. Que viera ao Brasil para conhecer o novo mundo. E aqui a sorte não lhe bafejou.

Tentou todos os tipos de ocupação. Viajou quase o país inteiro. Ao lado da companheira passou fome. Experimentou todas as sortes de privações.

Manoel, ou poderia ser outro nome qualquer, naquela noite quente a mim mendigou um prato de comida. Pena que não tive como atenuar-lhe fome. A não ser oferecer a ele um naco do meu sanduiche.

Hoje o encontrei ainda quase desperto. Acredito que ele não me reconheceu.

Manoel, ainda não sei o seu nome, é mais uma vítima do desterro. Um andarilho dos tantos que percorrem o mundo. Sem eira nem beira. Sem lenço nem documento. Neste sol de setembro.

Espero que ele consiga não apenas dar de comer aos olhos. Assim como atenuar a sua fome insaciável de comida. E de calor humano.

 

 

 

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