” Saio desta para outra melhor”

Despedir-se da vida nem sempre é fácil.

Principalmente quando se tem consciência. Não estamos atados a aparelhos, sedados, sem podermos manifestar sequer o desejo de partir.

Quantas e quantas vezes, durante a minha vida de médico, assisti, sem nada poder fazer, a pacientes internados em unidades de tratamento intensivo, cheios de sondas, stomas, apáticos, ainda ligados a um sopro de vida, prestes a deixar saudade nos que ficaram.

E eu, como profissional de saúde, apenas olhava aqueles pobres enfermos, pensando no quanto a vida é efêmera. Transitória, que deve ser vivida em intensidade plena, e muitas vezes não valorizamos a saúde, e a jogamos fora, numa vida desregrada, sujeitos a vícios maiores, como muitos jovens fazem.

O momento da partida muitas vezes passa despercebido. E até mesmo desejado. Como acontece a muitos doentes terminais. Sem nenhuma chance de continuar entre nós.

Assim aconteceu ao meu pai. Assisti, ao seu lado, ao seu passamento rumo à eternidade.

Que sofrimento ele passou durante o derradeiro ano de sua vida. Sofria ele. E nós, que o amávamos tanto, sofríamos junto.

No instante do seu último alento nada podia fazer para evitar o seu desprendimento.

Confesso, com lágrimas escorreitas pelo canto dos olhos, até que desejei que ele partisse.

Acredito até, onde ele estiver, ele ainda vela por nós.

Há tempos passados, quando ainda dava plantão numa UTI, e passava a noite inteira de olhos abertos, tentando manter vivos os internados, ainda me lembro de um velho senhor.

Ele sofrera um acidente vascular cerebral.

A sua idade ultrapassava os mais de noventa.

Seu Benedito, pessoa boa, era estimado por todos que o conheciam.

Sempre viveu numa rocinha encantada. Não tinha defeitos maiores. Ele se definia como gente acima do bem e do mal.

Foi durante uma noite escura que ele sentiu um formigamento do lado esquerdo.

A partir de então foi levado às pressas a um postinho de saúde de sua comunidade.

Fazia quase dois meses que ele estava naquela unidade de tratamento intensivo.

E todos que ali trabalhavam tinham-no em ótimo conceito.

Naquela noite escura, quando dava plantão, assisti ao passamento do Seu Benedito.

Ela arfava de falta de ar. Sua pressão caía assustadoramente.

Sua mão estava gelada. Seus sinais vitais mais e mais anunciavam o fim.

Foi quando passei pelo seu leito de morte.

Ele me olhava fundo nos olhos.

Foi quando ouvi, de seus lábios pálidos, esta frase que me fez pensar: “saio desta para outra melhor.”

Segundos depois Seu Benedito fechou os olhos. Despediu-se da vida sossegadamente. Como sempre foi em vida.

Foi quando me lembrei do meu pai. Ele em verdade, despediu-se de nós, sabedor que, do outro lado da vida seria bem melhor.

Em minha experiência nestes anos todos de medicina, com certeza, certos casos estarão bem mais felizes do outro lado. Basta de sofrer. Melhor viver em saúde plena. A ser jogado numa cama sem nenhuma chance de viver.

 

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