Sem medo de ser feliz

Antes, na mais tenra idade, tinha medo de uma bruxa que diziam assombrava os meninos que se diziam maus.

Não dormia sem passar no quarto de meus pais. Aconchegava-me junto deles. Fechava os olhinhos sonhadores. E só depois, em sono profundo, era levado ao meu quartinho, aquele que daqui me olha com olhos de saudade.

Tinha receio de quase tudo. Uma vez na escola, no jardim da infância, doce infância, hoje chamado maternal, temia pela repreensão da professora. Só quando ela me chamava a atenção era por motivo justo. Não prestava atenção na aula. Era tido como aluno dispersivo. E só pensava nas traquinagens da hora do recreio.

Pena que mais tarde cresci. Passei a viver das lembranças da tenra infância. Ainda com medo de ser feliz. Uma vez jovem feito, sonhos desfeitos, acabei me convencendo que a vida deve ser enfrentada sem medo. Mas quem disse que o destemor passou a ser meu estilo de vida.

O medo continuou a cavalgar-me as costas. Tinha receio de tudo. Até mesmo da borboleta azul.

O tempo continuou sua marcha inexorável a frente. Anos se passaram. E eu acabei virando gente.

Aos dezoito anos completos conquistei minha maioridade. E quem disse que os receios terminaram?

Foi então que outro tipo de medo acabou com minha mocidade. Foi um receio distinto. O que seria de mim num futuro perto?

Foi aí que elegi a medicina como meu caminho. Não foi fácil convencer ao jovenzinho que deveria deixar os medos de lado.

Uma vez formado acabei deixando-me levar por outros tipos de medos. Seria feliz na escolha? Ou teria me equivocado?

Durante anos a fio, médico feito, jovem com a cabeça recheada de sonhos, acabei por concluir que a medicina era uma ciência diferente das demais.

Ela exige de nós uma dedicação total. E deve ser exercida como um sacerdócio. Mas os anos me convenceram que a realidade seria diferente. Somente com o passar dos anos conclui que a realidade não é tão doce como um favo de mel.

Hoje, passada a mocidade, entrando na melhor idade, considerado idoso, mais que isso, ainda tenho certos receios. Quanto tempo mais estarei apto a viver com qualidade?

Quanto tempo me resta de vida? Ainda estarei por aqui quando meus netos estiverem crescidos. Emancipados. Serei capaz de acompanhá-los como meus pais fizeram durante a minha juventude? Ou tudo isso não passa de meras conjecturas de um velho ainda pensando que é um garoto. Aquela mesma criança levada que era repreendida na escola quando passava dos limites.

Hoje não tenho mais receios. Já vivi o bastante pra enfrentar os medos.

Só tenho medo de não poder decidir o que seria melhor pra mim. Quando estiver atado a um leito de hospital.  Cheio de cateteres e sondas. Com olhos abertos sem enxergar o sol que agora brilha. Sem poder balbuciar palavras. Na intenção de dizer que ainda sou feliz.

Hoje, uma vez setentando, não tenho mais medo de ser feliz. Espero continuar assim.

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