Tristes lembranças

Zé da Aurora sempre foi um homem dedicado ao trabalho.

Nascido e criado na roça. Ali cresceu ajudando ao pai nas tarefas cotidianas.

Aos sete anos deixou a escolinha. Situada no alto do morro. Na intenção de se mudar pra cidade.

Zezinho queria ir mais longe. Apesar de apreciar a vida no campo a aspiração do menino era se tornar médico.

Contrariando os desejos da família o esforçado menino fez as malas. E partiu, numa manhã bem cedo, de carona no velho caminhão leiteiro, em direção à cidade.

Despediu-se dos pais com lágrimas nos olhos. E prometeu, um dia, voltar com o diploma de médico na bagagem.

Ali, naquele rincão esquecido pelos homens, faltava de tudo. Um posto de saúde era a aspiração dos moradores daquele lugarejo. Quando alguém adoecia era removido para a cidade. E muitas vezes era tarde. O pobre enfermo chegava já sem vida. Por falta de atendimento médico muitos faleciam prematuramente.

Zé da Aurora ainda de lembrava de uma criancinha que não teve a sorte de ter um atendimento digno. Vindo a morrer nos braços da mãe. Aos menos de cinco anos.

Naquela manhã, quando Zé da aurora foi em busca de seu sonho, chovia a encher baldes.

O caminhão leiteiro ficou atolado no barro por horas a fio.

Já era tarde quando Zé chegou à cidade. Sem onde ficar procurou uma pensão modesta.

Ali permaneceu alguns dias.

Terminou o segundo grau aos dezesseis anos completos.

Solitário naquela cidade grande Zé quase não tinha amigos. Lutou, com as forças que dispunha, para ser aprovado no vestibular. Conseguiu seu intento depois de várias tentativas.

Finalmente, naquele ano perdido no tempo, Zé foi diplomado médico. Não foi um aluno brilhante. No entanto, perseverante, logo o doutor Zé conseguiu uma vaga de residente num hospital de renome.

Ali permaneceu por mais de cinco anos. Não tinha noites de sono. Os plantões absorviam-lhe a maior parte do tempo.

Ainda se lembra, numa noite escura e fria, quando foi chamado a atender um acidentado. Era madrugada alta. Lá fora chovia.

O rapaz fora atropelado por um motorista embriagado. Chegou ao pronto atendimento sem sinais vitais. O coração parou de bater. Depois de muito esforço finalmente parecia que o moço seria salvo. Mas foram debaldes as tentativas. O rapaz veio a falecer nos braços do Zé. Foi a primeira vez que o recém-formado viu a morte de perto.

Dois anos se passaram. A vida do doutor continuou naquela rotina de sempre. Desdobrando-se em plantões intermináveis. Indo de um lugar a outro. Ganhando pouco. E trabalhando muito.

Numa noite de primavera, era outubro em seu começo, durante um plantão numa maternidade, eis que deu entrada uma parturiente em trabalho de parto.

A pobre moça chegou chorando de dor. A criança não podia ser expelida pelo canal de parto. Uma cesária se impunha. Ao doutor cabia fazer a operação. Acompanhado apenas de uma enfermeira a cirurgia teve sucesso. A criança nasceu com o apgar alto. E sobreviveu graças ao esforço do doutor.

Mas, naquela noite maldita, outro caso chegou às mãos do doutor Zé da Aurora. Era outra parturiente. Desta vez ela veio a falecer antes que o filho nascesse. E a linda criança até hoje  não lhe sai do pensamento.

Anos e anos são passados. A vida do doutor Zé da Aurora continuava naquele ritmo alucinante.

Ora conseguia salvar vidas. Ora perdia a luta contra a morte.

Num dia, do qual se lembra, sem saudades, durante um atendimento numa madrugada chegou ao pronto atendimento uma criança levada pela mãe.

Ela estava ardendo em febre. Todos os esforços foram feitos para salvar a vida do menino. Mas ele sucumbiu naquela mesma noite. Sob o olhar atento do pobre doutor Zé da Aurora.

Passaram-se anos. Verões sucederam-se à primavera.

Doutor Zé da aurora decidiu voltar de onde veio.

Aos quase sessenta anos finalmente o bom doutor retornou a sua rocinha querida. Ali reencontrou os pais. Já bem idosos.

A roça onde nasceu estava como era antes. Sem um único posto de saúde.

Foi com denodado esforço que Zé conseguiu construir uma unidade de saúde modelo.

Ali permanecia o dia inteiro. Fazendo o que mais gostava. Atendia graciosamente todos que o procuravam.

Antes que se aposentasse doutor Zé da Aurora pensou no quanto a vida tinha sido generosa para com ele.

Apesar das tristes lembranças do seu passado. De quantas pessoas conseguiu salvar. E quantas vieram a fechar os olhos em suas mãos.

Assim é a vida de um médico. Apesar de muitos tentarem denegrir a nossa imagem.

Dezoito de outubro é o dia do médico. Não sei se ainda temos motivos para comemorações.

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