Pra ele era sempre madrugada

Seu Antenor, no alto dos seus oitenta anos, bem vividos, acordar cedo era o costume que trazia dentro de si desde a tenra idade.

Antenor morava num lugarzinho perdido entre o nada e o fim do mundo. Uma rocinha encantada. Ali nasceu. Cresceu ajudando ao pai a cuidar das vacas e seus bezerros.

Aos cinco anos já sabia tudo da vida na roça. Adorava assistir, com seus olhinhos claros, ao nascer dos bezerrinhos. Quantas vezes ajudava a vaca mãe quando a parturição se complicava.

Aprendeu, antes dos dez, a melhor época para semear as sementinhas de milho. Quando a chuva iria cair. Quando a vaca daria cio.

Aos quase quinze o menino Antenor cuidava sozinho de uma centena de ruminantes. Sabia como poucos manejar a enxada. Tornou-se um enxadachim de primeira.

Aos quase vinte, completos naquele mês de agosto, mês frio, ventoso, ao levantar bem cedo, teve uma enorme decepção. Ao acordar o pai, já idoso, deu com ele de olhos fechados. Seu Manoel morreu numa noite escura. Foi o jovem Antenor quem cuidou das exéquias fúnebres. Ele não tinha irmãos. A mãe já havia se despedido da vida há anos passados. Antenorzinho quase não desfrutou da companhia da progenitora. E ainda se recorda dos seus olhos claros e maneiras gentis.

Aos quase trinta Antenor tomou a si mesmo a incumbência de cuidar da fazendola. Ele mesmo ordenhava as vacas. Enchia os cochos de silagem de milho misturada a cana picada na hora. E a seguir, ainda antes das oito, tirava um cochilo leve. Também, acordando ao despertar da aurora, Antenor mal tinha tempo de dormir algumas horas apenas.

Pra ele sempre era madrugada. Fosse ao tempo de inverno ou introduzisse o verão.

Isso de ficar na cama até altas horas, como um primo da cidade, afeito a baladas, não era do seu costume. Antenor dormia antes das oito. Mal assistia o noticioso noturno fechava os olhos. E dormia por ali mesmo. Num sofá roído pelos ratos.

No dia seguinte era a mesma rotina. Dormir junto às galinhas. Trabalhar logo ao nascer do sol. E, ao cair da tarde, assim que as tarefas do dia se completassem, com o corpo exausto, o jovem Antenor acendia o fogão a lenha, e ali mesmo esquentava a sobra do almoço. Mal tinha tempo de cuidar dele mesmo. Quando ia à missa, numa capelinha num arraial perto, vestia a melhor fatiota guardada num guarda-roupa improvisado, feito com tábuas de caixote.

Antenor amava as madrugadas. Era quando olhava pro céu, contava as estrelas, muitas delas eram vagalumes piscantes, fechava os olhinhos sonhadores, e pensava na vida que levava.

Antenor amava a vida. Da mesma forma que amava as vacas. Pelos bichos tinha a maior veneração. Caso tivesse de se mudar pra cidade não sei o que seria de mim. Sofismava ele.

Quis o destino que Antenor envelhecesse. Afinal esse é o destino de cada um de nós.

Aos quase cinquenta, ainda com a saúde em dia, Antenor vivia na mesma rotina de sempre.

Acordava ao nascer do dia. Idolatrava as madrugadas. Não tinha tempo para pensar noutra coisa a não ser no trabalho duro.

Ao sessenta as coisas foram mudando. As doenças começaram a importunar a vidinha singela do já velho Antenor.

As juntas doíam. A vista claudicava. O corpo inteiro não respondia como dantes. Ainda amava as madrugadas. Acontece, durante o tempo frio que fazia naquele mês de agosto, inverno feito, quando o velho Antenor acordou, era antes das cinco, lá fora estava escuro, não conseguiu verter urina.

Como doía a sua bexiga. Foi levado por um vizinho amigo a uma unidade de saúde na cidadezinha mais próxima. Foi-lhe introduzida uma sonda na uretra. E foi-lhe recomendado que procurasse um especialista em vias urinárias.

Foi quando o velho Antenor chegou ao meu consultório. Simpático, foi o primeiro atendimento do dia. Era ainda cedo. Quase madrugada. Recomendei-lhe que operasse da próstata.

Ele se despediu de mim apertando-me forte a mão. Não sabia o que foi feito do velho Antenor.

Até o dia que me contaram. Ele acabou seus dias na terra em plena madrugada. Feliz da vida. Nesta sua vida singela. Acordando cedo. Dormindo mais cedo ainda. E contando as estrelinhas miúdas. Muitas delas seriam pirilampos de olhinhos brilhantes.

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